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Rua Paim, na Bela Vista, passa por renovação imobiliária

Entre prédios antigos e modernos, trecho na Bela Vista se transformou na rua mais diversa da cidade, com metro quadrado que varia de 5 000 até 12 000 reais

Por Ricardo Chapola
Atualizado em 19 abr 2019, 06h00 - Publicado em 19 abr 2019, 06h00

Uma rua íngreme de 400 metros de extensão, na vizinhança das valorizadas Paulista e Frei Caneca, conseguiu o que diversos planos diretores, leis de zoneamento e investimentos públicos milionários, da Copa do Mundo ao Minha Casa Minha Vida, jamais conseguiram: ter lado a lado moradores de rendas muito diferentes, em uma área servida por transporte público e com empregos à mão.

Em menos de uma década, metade do tempo em que vários governos prometeram acabar com a Cracolândia da Luz, a Paim deixou de ser um reduto de tráfico de drogas e prostituição. Conflitos ainda existem, e muitas disparidades, mas os números impressionam. “Só computamos cinco furtos na rua neste ano”, diz o delegado Júlio César dos Santos Geraldo, titular do 4º Distrito Policial. Oficialmente houve uma queda de 45% nos crimes cometidos por ali em cinco anos.

O zelador Jeová Bezerra: tiros eram comuns na região (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A transformação aconteceu com uma renovação imobiliária no local, quando casarões, cortiços e estacionamentos deram lugar a sete prédios, de padrão bastante mais alto que o dos velhos vizinhos, a partir de 2009. Quase 1 100 apartamentos surgiram no lugar, atraindo cerca de 3 000 novos moradores. Mas com uma similaridade aos da velha Rua Paim: a grande maioria é de apartamentos compactos, chamados estúdios, com menos de 40 metros quadrados. O Urbe, com dezoito andares e 180 unidades de 36 metros quadrados, tem apenas dois apartamentos disponíveis.

Nisso, a nova Paim é neta da velha Paim, que se verticalizou entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960. Ali, três edifícios históricos que homenageiam as naves de Santos Dumont abrigam igualmente 3 000 moradores em mais de 1 000 apartamentos. O maior deles é o 14 Bis, com 499 unidades entre quitinetes e apartamentos com outros tamanhos. O Caravelle tem 322 unidades de 42 metros quadrados. Já no Demoiselle há 276 apartamentos com área a partir de 28 metros quadrados.

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A aposentada Glatina Ritter: caminhada mais longa para as compras (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Todos carregam o apelido informal de “treme-treme”, pelo passado de violência e sexo. A abertura do Viaduto Doutor Plínio de Queiroz, em 1971, na gestão do prefeito Paulo Maluf, degradou a área, como aconteceu no Minhocão e em outros lugares cortados por elevados. A gestão mambembe, a inadimplência e a manutenção sofrível em condomínios com centenas de moradores fez o resto.

Tiroteios, por exemplo, eram corriqueiros. “Isso foi um tiro, mataram um rapaz bem aqui”, afirma o zelador Jeová Bezerra, apontando um buraco de bala na parede ao lado de seu posto de trabalho. “Eu via gente morrendo direto.” Responsável há 35 anos pelo Caravelle, o funcionário também se recorda da ocasião, em 1980, em que encontraram o corpo de uma mulher no terreno ao lado do edifício. “O pessoal ia jogar bola e deu de cara com a mulher morta”, relembra. Outra história que se conta nos corredores desses prédios é a dos botijões de gás que costumavam ser atirados pelas janelas dos apartamentos durante brigas e confusões diversas.

A estudante Isabella: mais segurança no centro que nos Jardins (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Os moradores mais novos elogiam a tranquilidade, comparada à de outros bairros mais badalados da cidade. “Caminho sozinha na rua a qualquer hora do dia e nunca tive nenhum problema aqui”, conta a estudante Isabella Paiva Grillo, que cursa direito no Mackenzie e no ano passado trocou o Jardim Paulista por um apartamento de 39 metros quadrados na Paim. “Já nos Jardins roubaram meu celular, me perseguiram na rua e tive vários outros problemas”, explica. Isso tem levado a região a superar a concorrência. “Procurei imóveis no Anhangabaú e no viaduto da Nove de Julho, mas fiquei escandalizada com a falta de segurança”, diz a produtora de vídeo Lais Fernandes, que optou por um apartamento de 28 metros quadrados no número 307 da Paim, um dos novos.

A produtora de vídeo Lais Fernandes: mudança há cinco anos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Apesar de estarem lado a lado, os públicos da antiga e da nova Paim raramente se misturam no dia a dia. Apesar de a vizinhança não ser segregada por muralhas como entre Morumbi e Paraisópolis, há quase uma linha imaginária que ainda divide a parte mais rica da parte mais pobre da via. Os botecos pé-sujo da galeria espremida entre o complexo dos prédios antigos, por exemplo, são área cativa da velha guarda, tanto pela tradição quanto pelo preço. “A turma mais nova costuma ir durante a madrugada para comprar cerveja, quando não tem mais nada aberto”, revela o zelador Bezerra, que paga 15 reais para almoçar diariamente nesses locais. Com raras exceções, os recém-chegados frequentam mais a Rua Augusta e a Avenida Paulista.

Tancredo Muniz em seu empório: antigos comerciantes oferecem novos serviços e lucram com os recém-chegados, de oficinas mecânicas a salões de beleza e bares (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Um dos poucos pontos de encontro entre as duas gerações é o empório Frutaria, aberto em 2017. “Sempre vou lá tomar café da manhã, os preços são ótimos”, afirma a farmacêutica Andressa Minuzzi, que se mudou para a Paim em dezembro de 2016. Essa impressão não é compartilhada pelos mais antigos. “Vou ali tomar uma cervejinha e ver futebol na TV, mas iria mais se não fosse tão caro”, reclama a aposentada Luiza Oliveira Vieira, na área há cinquenta anos. O empreendimento admite que mira o público mais novo do pedaço. “Criei uma carta com vários tipos de drinque, como gim-tônica, na faixa dos 20 reais”, explica o empresário Tancredo de Souza Muniz. Antes de abrir a Frutaria, ele já era dono de um restaurante vizinho bem mais simples. Ali também ocorreram transformações. “Passei a comprar picanha importada e o preço subiu de 19 para 42 reais desde a chegada desses novos clientes”, diz. “Se eu não tivesse feito isso, ainda teria cadeiras de plástico.”

Há outros pontos que se beneficiaram com a mudança no perfil do consumidor e aumentaram a margem de lucro. No principal mercado local, o Adriata, o quilo do feijão é comercializado a 10 reais, enquanto uma caixa de leite sai a quase 5 reais e o saco de 5 quilos de arroz, a 16 reais. Em pontos mais distantes, como o supermercado Master, na Frei Caneca, esses mesmos produtos custam 7, 2 e 11 reais, respectivamente. “É mais longe e eu preciso de ajuda para carregar as sacolas, mas compensa”, explica a aposentada Glatina Ritter, de 82 anos, que mora em um apartamento de 42 metros quadrados no Caravelle.

O aposentado Lourival Prado: transformações em cinquenta anos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

A oficina mecânica instalada ali há dez anos também comemora um crescimento de 20% no faturamento nos últimos tempos. “Ao contrário do pessoal mais antigo, a moçada nova que veio para cá tem carro na garagem”, explica o proprietário Ricardo Cabral. O fenômeno do aumento de preços é corriqueiro em locais que experimentaram migrações do tipo. “Se existe um consumidor com poder aquisitivo maior, o comércio se adéqua a esses novos padrões de consumo, subindo os preços”, afirma a economista Julia Ximenes, assessora da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (Fecomercio).

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Também existem na Paim alguns espaços em que o tratamento é diferenciado de acordo com o tipo de cliente. “Oferecemos alguns descontos se o morador é mais antigo”, diz a manicure Zélia Chang, funcionária do salão de beleza Camarim, inaugurado em 1999. Por ali, fazer as unhas sai por 22 reais, valor mais em conta do que em estabelecimentos do entorno. Na Frei Caneca, o mesmo serviço não custa menos de 40 reais, em média. Com o passar dos anos, o público do Camarim também mudou. “Há dez anos, minhas clientes eram principalmente garotas de programa, agora atendo muitos dos moradores novos”, afirma.

O êxodo de narcotraficantes e a chegada de novos moradores, até nos treme-tremes, melhoraram a condição nos antigos prédios. “Todo mundo aqui paga direitinho, não falta dinheiro para manter o edifício em ordem”, diz Edvaldo Silva, síndico do Caravelle há catorze anos. O contraste dos valores pagos para comprar ou alugar uma unidade na rua persiste. O metro quadrado nos prédios que homenageiam o pai da aviação gira em torno de 5 000 reais. Nos novatos, quase ao lado, o preço supera os 11 000 reais. Um aluguel mais condomínio no 14 Bis pode sair por módicos 1 100 reais. No Urbe, a locação de um apartamento do mesmo tamanho passa dos 3 500 reais.

Quem comprou imóvel ali antes da transformação fez um bom negócio. “Paguei 19 000 reais por meu apartamento há quinze anos. Hoje tem gente pedindo 150 000 reais por unidades do mesmo tipo”, conta o pesquisador Ubirajara Martins Gomes, que mora em uma quitinete de 50 metros quadrados no 14 Bis. A poucos metros dali, nos prédios novos, apartamentos com dimensões semelhantes às das unidades do 14 Bis são comercializados atualmente a 900 000 reais. É o que ocorre no MaxHaus, com imóveis de 74 metros quadrados. O preço médio do metro quadrado para venda por ali cresceu quase 150% entre 2009 e 2019, saltando de 4 500 reais para 11 300 reais, de acordo com o Sindicato da Habitação (Secovi). O valor já é próximo ao cobrado em bairros badalados da cidade, como Moema e Itaim, onde o metro quadrado custa 11 800 e 11 900 reais, respectivamente, segundo o GrupoZap.

O personal trainer Léo Forte: plano de abrir uma academia na rua (Alexandre Battibugli/Veja SP)

O que parece unir veteranos da área aos recém-chegados é a reclamação contra o inflacionamento dos preços na região, vítima do sucesso da nova Paim. “É caríssimo morar aqui”, afirma o personal trainer Léo Forte, que desde 2014 divide um apartamento de 40 metros quadrados com a mulher, a biomédica Roberta Amarante, no condomínio NKSP. O casal paga 2 700 reais de aluguel e condomínio por mês. De olho em novas oportunidades na região, Forte estuda a compra de um terreno vizinho para abrir uma academia de crossfit. A área que ele está paquerando abrigava um dos antigos cortiços da rua. Dono de um desses locais, o comerciante Marcelo Cardoso, de 70 anos, derrubou outro em 2017 para a construção de um galpão de 280 metros. “Era um cortiço muito feio, vendiam droga ali na frente e nunca entrei lá porque tinha medo”, diz. “Como a Paim tem recebido novos serviços, pensei em criar um espaço.” Moradores mais antigos também têm encontrado oportunidades para lucrar com o aumento do preço dos imóveis no local. Um rapaz conhecido na região apenas como Brito comprou 34 apartamentos no Caravelle para alugar a outras pessoas. Todos estão ocupados, a um preço de 750 reais mensais, além de 350 reais pelo condomínio.

A demolição dos cortiços também colaborou para a limpeza da rua na última década. Os habitantes que estão na região há mais tempo lembram do tempo em que havia pilhas imensas de entulho espalhadas para todos os lados. Atualmente, os vizinhos dizem que a sujeira permanece apenas em uma parte da via. Para alguns, foi necessária a chegada dos moradores mais abastados para a limpeza melhorar. A prefeitura, no entanto, informa que realiza varrição da área todos os dias e que mantém a mesma frequência de outras épocas. “Em média, são coletadas 13 toneladas de resíduos na região”, afirma, em nota, a administração municipal.

Teatro Maria Della Costa, na Paim, nos anos 90: point boêmio (Fernando Sampaio/Estadão Conteúdo)

A Rua Paim, quem diria, era pouco povoada até o início do século passado, conhecida como “Sítio do Capão”. O nome atual surgiu para homenagear José Paim Pamplona, engenheiro português que ajudou a fundar o bairro da Bela Cintra, hoje Bela Vista. “Quando cheguei por aqui, ainda sobravam algumas poucas casas, a maioria ocupada por italianos e espanhóis”, diz o aposentado Lourival Prado, que mora na Paim há mais de cinquenta anos. No início da década de 60, com a construção do Complexo Santos Dumont, composto dos edifícios 14 Bis, Demoiselle e Caravelle, a região passou a ser ocupada pela classe média e muitos artistas que se instalaram em suas quitinetes, como eram conhecidos os quarto e sala. Na época, era um ponto de boemia frequentado por cantores como Aracy de Almeida, o humorista Ary Toledo e grupos musicais como Os Originais do Samba, do comediante Mussum (a irmã dele morava ali). A decadência dos prédios e o trânsito pesado levaram ao êxodo dos artistas, e a transformação das casas dos imigrantes em cortiços. Hoje, apenas um desses casarões continua de pé, abandonado. Vizinhos ainda esperam promessas antigas como a demolição do viaduto que separou a Nove de Julho. Ainda assim, este é um raro caso de transformação positiva com classes diferentes lado a lado.

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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 24 de abril de 2019, edição nº 2631.

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