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Os planos de Doria para a polêmica dos grafites na cidade

Em ação apressada, prefeitura apaga desenhos da 23 de Maio, provoca críticas e gera uma contrarreação feroz dos pichadores

Por Julia Flamingo, Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 jan 2017, 17h09 - Publicado em 27 jan 2017, 16h09

Após vencer a eleição com o slogan “Acelera, São Paulo”, João Doria assumiu o cargo no dia 1º de janeiro disposto a mostrar que o lema era para valer. Somente nos últimos dias, passeou de cadeira de rodas para lançar um programa de melhoria das calçadas, inaugurou banheiros públicos de inox e com ar-condicionado na Praça Dom José Gaspar e aumentou os limites de velocidade das marginais, anunciando que uma frota de dez picapes será utilizada para serviços de manutenção e de trânsito nessas vias, por meio de uma parceria com a Mitsubishi.

Segue também em ritmo forte o Cidade Linda, seu projeto de recuperação de locais degradados da metrópole com mutirões de serviços públicos. Com 5 quilômetros de extensão, o maior painel de grafites da América Latina estava na rota do programa e acabou sendo atropelado.

No último dia 22, funcionários municipais apagaram com camadas de tinta cinza boa parte dos desenhos coloridos da Avenida 23 de Maio, com o argumento de que muitos estavam esmaecidos, sujos ou rabiscados. A ação gerou muitas críticas e provocou uma onda de pichações contra o prefeito.

Funcionário em ação na avenida: apenas oito trechos foram poupados (Foto: Alf Ribeiro/Futura Press)
Funcionário em ação na avenida: apenas oito trechos foram poupados (Foto: Alf Ribeiro/Futura Press) ()

Às 21 horas da última terça (24), a frase “Chora, Doria”, formada por esguias letras negras de 4 metros de altura, surgiu pichada em um dos muros do Estádio do Pacaembu. Horas antes, o nome do tucano havia sido rabiscado doze vezes em um trecho da 23 de Maio.

Ataques semelhantes ocorreram nos dias anteriores em locais como o Largo da Batata, em Pinheiros, e a Praça da República, no centro. Na quarta (25), data do 463º aniversário da capital, sobrou para a estátua de bronze em homenagem ao apóstolo Paulo na Praça da Sé: a peça de 3,5 metros de altura amanheceu suja de tinta vermelha.

Detido em flagrante pela ação, o jornalista Pedro do Amaral Souza, de 26 anos, filho do embaixador José Estanislau do Amaral Souza Neto, diretor-geral do Instituto Rio Branco, foi liberado pela polícia no mesmo dia. Segundo o histórico do boletim de ocorrência, Pedro disse que fez aquilo para protestar contra diversas ações políticas, principalmente as do novo prefeito.

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Horas depois do ocorrido, Doria depositou flores no pé do monumento e falou sobre o caso. “As pessoas que fazem isso não gostam da cidade de São Paulo”, afirmou.

Doria e a estátua manchada: prisão de filho de embaixador (Foto: Alice Vergueiro/Estadão Conteúdo)
Doria e a estátua manchada: prisão de filho de embaixador (Foto: Alice Vergueiro/Estadão Conteúdo) ()

O mural que desencadeou essa guerra do spray surgiu na 23 de Maio em 2015. O projeto para sua execução envolveu um grupo de sete curadores, 490 artistas e investimento de 1 milhão de reais, bancado por Fernando Haddad. Antes da faxina no local, conselheiros próximos ao atual prefeito haviam alertado sobre a provável repercussão negativa e, como cautela, Doria encomendou um estudo interno para analisar quais desenhos poderiam ser mantidos.

Foram apontados oito, de artistas renomados como osgemeos e Tikka, e sugeriu-se adiar a limpeza, para que os critérios de seleção fossem debatidos de forma mais detalhada com o público. Decidiu-se, no entanto, manter a agenda do Cidade Linda.

A gritaria foi forte, principalmente nas redes sociais. Internautas postaram textos em tom de denúncia de crime contra o patrimônio cultural da humanidade, comparando a ação à queima de livros em praça pública. Vários memes sobre o assunto circularam na internet. Em um deles, o prefeito virou “Doria Grey” (cinza, em inglês), um trocadilho com o personagem-título do clássico O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde.

Houve também uma rápida multiplicação de “especialistas” em arte urbana. Um dos mais inflamados, o ator Caio Blat, chamou o prefeito de “reacionário” no Instagram. Até a apresentadora Fátima Bernardes, da Globo, palpitou na história, falando que houve pressa na ação. “Parece que apagamos os afrescos da Capela Sistina”, ironizou um dos principais auxiliares de Doria, em meio ao fogo cruzado.

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Muro do Pacaembu: sujeira em patrimônio tombado (Foto: Reprodução/Instagram)
Muro do Pacaembu: sujeira em patrimônio tombado (Foto: Reprodução/Instagram) ()

Dos 300 grafites cobertos, dez eram assinados por nomes com fama internacional, a exemplo de Flip, Cranio, Titi Freak e Rodrigo Branco. O fato de terem se perdido apenas 3% dos trabalhos mais relevantes não diminuiu a gritaria. “A escolha do que deveria permanecer foi absolutamente aleatória”, critica uma das curadoras do mural, Barbara Goy.

Eduardo Kobra, um dos nomes poupados, sofreu represálias. Na quarta passada, 25, sua obra na 23 de Maio que retrata cenas de São Paulo no começo do século XX foi vandalizada. Em cima dela, picharam uma imagem de Doria com um rolo de tinta.

Alguns dos artistas não se importaram muito de ver suas obras ser banidas das paredes sem aviso prévio. “O grafite tem caráter efêmero, está propenso a intervenções e não nasceu para ser mantido indefinidamente”, afirma Gustavo Cortelazzi. Ele teve apagado o seu desenho de um peixe colorido, mas angariou 40 000 curtidas com um post no Facebook em que minimizava o ocorrido.

Largo da Batata: ordem da prefeitura para limpar tudo (Foto: Reprodução/Facebook)
Largo da Batata: ordem da prefeitura para limpar tudo (Foto: Reprodução/Facebook) ()

A tosca cobertura que tomou conta do espaço também mereceu críticas. Em sua conta no Instagram, a dupla osgemeos postou um vídeo de protesto contra a limpeza do mural. Nas imagens, a câmera passeia por um muro pintado de cinza, mostrando pequenos pedaços de grafite pintados por baixo dos trechos onde o reboco está parcialmente descascado.

No fim, chega-se a um desenho com a frase “Parabéns, São Paulo. Ganhamos mais uma vez o desrespeito com a arte”. O secretário de Cultura da prefeitura, André Sturm, reconheceu em uma entrevista que a 23 de Maio “ficou um pouco cinza”. Se a ideia era tirar de cena os desenhos envelhecidos e rabiscados, a emenda acabou sendo pior que o soneto.

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O local tornou-se mais feio e triste, um contrassenso em uma cidade que ganhou destaque mundial por ser um celeiro de ótimos grafiteiros. Não bastasse o fato de os bonecos amarelos de osgemeos estamparem paredes gigantescas em países como Alemanha, Espanha, Estados Unidos e Canadá, o artista Nunca já desenhou a fachada do importante museu britânico Tate Modern e, neste ano, Kobra vai pintar 28 murais em Nova York, após acordo com a prefeitura local.

“Por que, em vez de apagarem as obras, não estimulam a produção de novas, para usá-las como atrativo turístico?”, questiona o arquiteto Baixo Ribeiro, dono da galeria Choque Cultural, em Pinheiros, especializada em arte urbana.

A Ponte Estaiada pichada (Foto: Uriel Punk/Estadão Conteúdo)
A Ponte Estaiada pichada (Foto: Uriel Punk/Estadão Conteúdo) ()

Pega de surpresa com a repercussão da história, a prefeitura reagiu, tentando mostrar que haverá um futuro colorido para muitos dos paredões da metrópole. Um dos projetos, tirado às pressas da gaveta, envolve a plantação de trepadeiras e outros arbustos em 6 600 metros quadrados de muros e 2 200 metros de canteiros laterais na 23 de maio. “A instalação ficará a cargo do sindicato das empresas de manutenção das áreas verdes municipais, sem custo para os cofres públicos”, explica o secretário do Verde e do Meio Ambiente, Gilberto Natalini.

A iniciativa deve ser estendida a outras áreas, como as pontes sobre as marginais Pinheiros e Tietê. O maior plano, no entanto, é a criação de um Museu de Arte na Rua, espalhado por vários pontos, onde profissionais credenciados produzirão painéis. O primeiro será inaugurado no Baixo Augusta, ainda sem prazo. Inspirado no distrito de Wynwood, em Miami, surgirá na região central um “grafitódromo”, com lojas e oficinas.

O pacote também inclui o pagamento de um cachê aos artistas, com valor ainda não definido. “O plano seria anunciado depois do Carnaval, mas, com o ruído causado, vamos antecipar o início para os próximos dias”, diz Sturm.

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Doria não é o primeiro prefeito a sair rabiscado de uma batalha contra os desenhos nos muros da capital. Em 1988, Jânio Quadros mandou instalar floreiras na própria 23 de Maio, com a intenção de coibir intervenções no local. A iniciativa deu em nada.

Vinte anos depois, com a então recente Lei Cidade Limpa debaixo do braço, Gilberto Kassab mandou apagar um mural de osgemeos na mesmíssima avenida. Em 2016, Fernando Haddad passou tinta cinza nos pilares do Minhocão com a justificativa de que as obras ali estavam danificadas por pichações e cartazes. Todas as medidas geraram críticas e reações de vândalos.

Em comparação com outras metrópoles do mundo, São Paulo é até bem permissiva nesse campo. Tanto a Nova York do pintor Jean-Michel Basquiat como a Londres do grafiteiro Banksy mantêm políticas duras em relação a quem age fora da lei. Na cidade americana, sobretudo na ilha de Manhattan, nenhum traço desautorizado permanece mais do que 24 horas na rua.

Na capital inglesa, a multa por desenhar em local público ou privado pode chegar a 5 000 libras (cerca de 20 000 reais). Já em Berlim, na Alemanha, a pintura é liberada apenas em locais predeterminados.

O painel da 23, em foto de 2015: o maior da América Latina (Foto: Ronny Santos/Folhapress)
O painel da 23, em foto de 2015: o maior da América Latina (Foto: Ronny Santos/Folhapress) ()

Em São Paulo, o poder público começou a tomar medidas mais duras em agosto de 2016. Na época, após um ataque na Ponte Estaiada, na Marginal Pinheiros, a Delegacia do Meio Ambiente iniciou uma investigação para mapear os principais grupos da cidade.

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O inquérito identifica 21 indivíduos, considerados os líderes do movimento, e deve ser finalizado no próximo mês com a responsabilização de todos por associação criminosa, que prevê de um a três anos de prisão.

Trata-se de uma novidade, pois até agora a prática era enquadrada como delito ambiental, com pena de três meses a um ano. De modo geral, os condenados cumprem punições alternativas. “Agora vamos botá-los na cadeia”, afirma o delegado Marcos Galli Casseb.

Ao mesmo tempo em que apresenta planos para contemplar e valorizar os grafiteiros paulistanos, Doria promete ser implacável contra os pichadores. No âmbito da administração municipal, a ordem expressa do tucano para as prefeituras regionais é apagar imediatamente todos os rabiscos endereçados a ele.

Além disso, quer encaminhar projeto de lei à Câmara para que os vândalos sejam multados ou então limpem os muros, se não tiverem dinheiro. Muitas vezes, no entanto, a repressão só aumenta o apetite da turma, disposta a tudo para aparecer e ganhar holofotes, na linha “quanto maior o risco, maior o prêmio”. A guerra do spray pode estar apenas começando.

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