“Pequena África”: Sítio arqueológico Saracura começa a ser resgatado
Vestígios de quilombo que existia na região do Bixiga foi encontrado nas obras da futura linha Laranja do Metrô
Encontrado por acaso durante a escavação da parada 14 Bis da futura Linha 6-Laranja do Metrô, no bairro do Bixiga, o sítio arqueológico da Saracura começa enfim a ser resgatado. Após uma previsão de que a tarefa seria iniciada em 2022, a empresa A Lasca, responsável pela escavação histórica, deu a largada no processo na última segunda-feira (23).
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O bairro era atravessado por um córrego chamado Saracura. O quilombo da região, um dos maiores da cidade, ficou conhecido como “Pequena África”. Abrigou “aquilombados” — pessoas escravizadas e descendentes que fugiam das senzalas — desde o início do século XIX, segundo os historiadores. A área teria sido, ainda, um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque — não à toa, é onde nasceu a escola de samba Vai-Vai, em 1930.
As obras da Linha Laranja, prometida para 2025, são acompanhadas desde o início pela consultoria arqueológica A Lasca. Após a descoberta, em abril do ano passado, a construção chegou a ser suspensa temporariamente. Acabou retomada, mas passou a ser monitorada de perto pelos arqueólogos até que houvesse segurança para o resgate dos materiais históricos.
Os vestígios arqueológicos estavam soterrados entre 3 e 5 metros da superfície. Logo no início das escavações, foram descobertos itens como garrafas e louças que retratavam a vida no quilombo. “São elementos que contam a história de uma sociedade de maneira diferente. A documentação histórica tem um viés: o olhar de quem informava. Com os artefatos, a gente entende o cotidiano de outra maneira”, afirma Lúcia Juliani, sócia da A Lasca. Após a coleta, os itens resgatados são limpos e catalogados. A consultoria faz, então, um relatório que situa os achados dentro do contexto histórico, com pesquisas bibliográficas. Depois, vão para instituições especializadas como o Centro de Arqueologia de São Paulo e o Museu de Arqueologia da USP. Um parecer do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) considerou o sítio como “elemento de valorização, identificação e pertencimento de grupos vulneráveis e silenciados do povo brasileiro”.
Um coletivo de moradores atua para que a estação 14 Bis receba o nome de Saracura-Vai-Vai. Há um abaixo-assinado com mais de 2 800 assinaturas pela proposta. Nas redes sociais e em manifestações no processo arqueológico da Linha Laranja no Iphan, o grupo — composto principalmente de ativistas, sambistas, historiadores, arqueólogos e arquitetos — pede que as obras sejam suspensas até que exista um projeto de preservação dos achados, que incluiria a construção de um memorial na estação. Também demandam que a guarda dos vestígios fique sob responsabilidade de uma instituição especializada em patrimônio negro, como o Museu Afro Brasil.
Em nota, a Linha Uni, concessionária responsável pelo ramal, afirma que trabalha “na caracterização da descoberta” e que os materiais serão investigados e catalogados. “Com a aprovação do Iphan, eles serão encaminhados para o acervo do Centro de Arqueologia de São Paulo, vinculado ao Departamento do Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura. Posteriormente, com a devida autorização das autoridades competentes, a Linha Uni, em conjunto com a comunidade do entorno, poderá promover exposições de forma a ampliar o direito de acesso e conhecimento do material encontrado”, diz a nota.
Não é incomum que achados arqueológicos aconteçam em obras ferroviárias de São Paulo. Por lei, qualquer grande construção, pública ou privada, precisa de acompanhamento especializado no assunto. A expansão da Linha 2-Verde até a Penha, por exemplo, é alvo de uma ação do Ministério Público Federal por atravessar o Parque Linear Rapadura, um sítio arqueológico. O projeto visa construir um pátio de trens no local. O processo não foi julgado. Na própria Linha Laranja, foram encontrados itens de valor arqueológico nas futuras estações São Joaquim, Santa Marina e Pompeia, mas o “Saracura-14 Bis” é visto como o mais relevante até o momento.
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Publicado em VEJA São Paulo de 1 de fevereiro de 2023, edição nº 2826