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“Há os viciados em crack e os viciados em Cracolândia”, diz Edu Felistoque

Cineasta que frequentou o “fluxo” para gravar documentário conta o ataque que sofreu e os reflexos de viver infiltrado em meio a tanta degradação

Por Sérgio Quintella Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 27 Maio 2024, 22h11 - Publicado em 8 abr 2022, 06h00
Edu é um homem branco, idoso de cabelos grisalhos. Ele usa uma camisa azul marinho, uma calça jeans escura e uma bolsa lateral cinza. Posa em pé no meio da Rua Helvétia, onde costumava ser a Cracolândia
Um vazio: sem usuários e traficantes, Edu lembra dos dias vividos na Rua Helvétia (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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Com uma latinha de cerveja quente em uma mão e um celular velho na outra, o cineasta paulistano Edu Felistoque, 60, chegou ao fluxo de usuários e traficantes próximo à Estação da Luz em 2016 para filmar o documentário que tem o nome da região mais degradada da cidade. Cracolândia está desde o último dia 31 disponível em plataformas digitais.

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Com roupas velhas, cabelos e barba longos, ficou um ano e meio infiltrado. Mesmo sem usar nem um grama de droga, conseguiu conversar com todo tipo de frequentador, inclusive os que utilizam o lugar apenas como uma “biqueira” (ponto de venda). “A classe média vai lá de carro, antes da balada, e pega a droga que quiser.” Na última segunda (4), ele retornou ao antigo fluxo, na Rua Helvétia, para uma sessão de fotos, e tentou entrar na Praça Princesa Isabel, atual local de concentração. “Nada mudou até hoje.”

Qual a sensação ao retornar ao local anos depois de ter entrado lá para gravar Cracolândia?

Foi uma boa ideia essa de ir para lá fazer as fotos. Fazia três anos que eu não voltava àquele espaço onde era a célula-mãe, na Rua Helvétia. Cheguei lá e estava tudo vazio. Tentei entrar na Praça Princesa Isabel, mas não consegui e vi de longe as mesmas cenas de horror. Fogo, pessoas acuadas, traficantes orientando os usuários a resistir (no dia houve uma ação de zeladoria da prefeitura que removeu barracas e móveis). Foi muito difícil para mim. Eu não consegui ver ninguém da época. Foi muito tocante.

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Como foi se infiltrar entre usuários e traficantes? O senhor usou algum tipo de droga para poder interagir?

Não usei, não, de jeito nenhum. Eu ia com roupa velha, bota velha. Cabelos e barba cresceram. Para ser aceito e não ficar de bobeira, o negócio é logo entrar num bar. No boteco você chama uma cerveja e ouve muita coisa. E vai sendo aceito. E eles entendem que seu barato é só tomar uma. Eu ficava com a mesma latinha de cerveja o tempo todo. Me ofereceram droga para caramba. Ficaram desconfiados. Mas aí passei a voltar com mais frequência e eles veem que você quer só ficar por lá. Eu não contava minhas histórias, pois eles é que queriam ser ouvidos.

O que mais chocou nesse período?

As mães ficavam negociando para poder entrar no fluxo e procurar seus filhos. O pessoal cobrava 150, 200 reais para elas verem o filho, mas era sempre um golpe. Em um certo dia, olho do nada e vejo um garoto com o penteado igual ao do meu filho, comprido, com coque. Eu desmontei de uma tal forma e entrei em parafuso. Mas não era meu filho. Conversando, ele me disse que sua mãe achava que ele usava droga, mas estava lá para ajudar o pessoal. Esse menino vai inspirar um personagem do meu próximo filme.

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Como vai ser esse filme?

Será uma ficção e se chamará A Primeira Célula. Começaremos a rodar no fim deste ano e até o meio do ano que vem a gente conseguirá lançá-lo. Vamos mostrar como era a Cracolândia trinta anos atrás e como é hoje. Engana-se quem pensa que só tem classe desprestigiada. Porque lá tem muita classe média e alta. Vi meninas e meninos incríveis. Ali você não encontra só viciado em crack, mas viciados em Cracolândia. É uma questão de pertencimento. As pessoas vão lá e podem comprar e levar a droga aonde quiserem. Outras preferem estar lá porque são todas iguais. Tinha amizade, uma confraria. Existem regras.

Teve algo que você não teve coragem ou vontade de colocar no filme?

Muitas coisas. Como depoimentos de confissão de assassinato. Não foi uma vez só, foi um monte. Também não mostrei uma mãe amamentando um bebê recém-nascido e fumando crack. Deletamos corpos largados no chão, gente levando tiro. Se eu falar tudo, a lista não vai acabar nunca.

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O senhor mostra no filme a ação de associações e ONGs que atuam na região. Na sua opinião, depois de vivenciar in loco as atuações, elas são úteis ou não?

Eu tomei porrada da esquerda e da direita. Muita gente sabe qual é o meu passado. Fui neutro. Eu aprendi que um documentarista não tem lado. Escutei todo mundo. E pode ver que a edição é matemática. Eu critico A Craco Resiste (uma das associações) pela estratégia. Eles até podem estar bem-intencionados, mas são despreparados e têm um slogan equivocado, que é de matar. Eles vendem uma ideia publicitária de que você pode fumar até morrer.

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E os grupos e personalidades religiosos, como o padre Julio Lancellotti , qual sua opinião sobre suas atuações?

Ele tem boa intenção. Eu sou ateu. Vi muita coisa lá, como vi em presídios, como no Carandiru. Vejo isso como positivo. A pessoa precisa se agarrar a algo. Vi muita gente sair de lá pela religião. Pode ser placebo? Pode, mas tem um ponto positivo.

Geralmente as operações policiais são mais rumorosas do que com efeitos práticos. Por que os políticos insistem, nas últimas décadas, em sempre decretar o fim da Cracolândia?

Cracolândia é prejuízo político. Quando mandam a falácia de que acabou, muita gente fica com isso na cabeça. Pode ser de esquerda, de centro e de direita, sempre fica o dito pelo não dito.

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Imagino que o senhor seja outra pessoa depois de frequentar a Cracolândia por um ano e meio. Quais os reflexos na sua vida tanto tempo depois?

Um certo dia eu estava falando com uma travesti. Fiquei comovido com a história dela, chutada pela polícia, pela família, fazendo programa, em estado deplorável, sem tomar banho fazia dias, com as unhas pintadas de vermelho e com a tinta descascada. De repente ouvi um barulho muito forte e olhei para o lado. Nesse momento ela pega uma seringa e dá nas minhas costas. Fui ajudado por uma mãe que esperava para ver o filho. Eu fui direto para o Instituto Emílio Ribas e tomei diversos coquetéis antidroga. Fiz exames e não tinha nada, mas fiquei um mês parado e precisei retornar ali mensalmente, por seis meses. Nessa época tive que me afastar de meu filho e minha namorada. Passei um tempo em Portugal e foi uma pressão psicológica muito grande. Eu nunca culpei a travesti.

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Publicado em VEJA São Paulo de 13 de abril de 2022, edição nº 2784

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