Os prejuízos bilionários e o jogo de culpados pelo apagão em São Paulo
Na escuridão mais uma vez, população deve se preparar para novos eventos climáticos extremos
Por volta das 19h30 da sexta-feira (11), a Grande São Paulo foi mais uma vez alvo do que os meteorologistas chamam de evento climático extremo.
Com rajadas de ventos de 107 quilômetros por hora, a tempestade provocou rapidamente as consequências que seus habitantes conhecem bem, afinal, passaram por algo semelhante há menos de um ano: alagamentos, semáforos apagados, árvores ao chão (foram 386 quedas na capital) e cortes de energia.
Desta vez, 2,1 milhões de residências e comércios ficaram imediatamente no escuro. Segundo o IBGE, a Região Metropolitana possui 2,36 moradores para cada habitação, elevando o número de prejudicados para a casa de 5 milhões de pessoas, uma população maior que a de quinze dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal.
No início do apagão, a Enel, concessionária responsável pela distribuição de energia em 24 das 39 cidades da Grande São Paulo, passou previsões relativamente curtas para o restabelecimento do sistema, o que levou muita gente a subdimensionar o impacto que ocorreria em suas vidas.
Foi o que aconteceu com a confeiteira e empresária Vivianne Wakuda, que possui uma doceria em Pinheiros. “Tínhamos a esperança de que a energia voltasse no sábado de manhã, pois a Enel havia informado o prazo. Se houvesse o dado real, de que a luz só retornaria na segunda, eu teria procurado outros meios, pedido ajuda, alugado gerador, mas eles foram enrolando e as comidas acabaram estragando”, diz a proprietária da Vivianne Wakuda Pâtisserie.
O saldo do prejuízo ficou em 40 000 reais, referente apenas aos insumos de seus produtos, entre eles o choux, o carro-chefe da casa. “Fora o faturamento de cinco dias”, relata.
Situação parecida viveu a chef Andrea Kaufmann, do AK Deli, no Alto de Pinheiros. Com o restaurante fechado desde o temporal de sexta, a empresária postergou as ações de migração do estoque de seus três freezers e cinco geladeiras devido aos prazos informados pela concessionária. “Quando percebi que as datas não eram reais, já era tarde. Perdemos tortas, sorvetes, pão de queijo, sem falar nas carnes e frango. Só sobrou o picles, que não estraga”, relata Andrea, que calcula um prejuízo de 50 000 reais, fora os serviços que deixaram de ser realizados.
Em Paraisópolis, a segunda maior favela da capital, uma ONG que atende cerca de 200 crianças sofreu danos elétricos e teve um telhado destruído. Sem luz e teto, a Unidos de Paraisópolis, que ensina música e informática, lançou mão de uma vaquinha para custear a reforma e conseguiu arrecadar os 26 000 reais pretendidos. “Vamos conseguir retomar as aulas antes do imaginado”, comemora Acácio Reis, diretor do projeto.
Mesmo quem possui meios de se virar na escuridão enfrentou apuros para continuar trabalhando. Com um gerador comprado há alguns anos, o dono de padaria Rui Gonçalves precisou rodar boa parte da Vila Andrade, na Zona Sul, para encontrar um posto de combustível que tivesse energia e dispusesse de diesel. “De sexta e domingo, gastamos 3 200 reais de combustível, mas o gerador quebrou no sábado e nos deixou na mão”, relata.
Entre fechar a padaria e procurar mão de obra para consertar o motor, lá se foi mais meio dia de expediente. “Gastei mais 2 600 reais, entre peça e mão de obra. Ter gerador é bom, mas exige manutenção periódica, que custa mais de 1 000 reais por mês, não é todo mundo que consegue pagar”, diz Gonçalves, que é presidente da Sampapão, o sindicato das padarias paulistas.
A 7 quilômetros dali, no Alto da Boa Vista, o também dono de padaria Adérito Cardoso, 59, não teve condições de arcar com um gerador próprio ou alugado — “estavam cobrando 10 000 reais a cada oito horas, um absurdo”, diz — e precisou fechar as portas logo na noite de sexta. Para completar, o condomínio onde mora, a poucos quarteirões dali, também ficou às escuras. “Fui contemplado duas vezes”, lamenta.
Em casa, sem condições de sair, a filha, Sofia, 15, tratou de fazer a lição de casa da escola usando iluminação do celular e velas. Para alívio da família, os dois locais voltaram a receber energia na segunda-feira. “A partir daí, na padaria, virou a operação rescaldo, para limpar tudo e jogar fora os produtos estragados”, diz Adérito, que levou um prejuízo de 100 000 reais.
Segundo a Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo (FecomercioSP), considerando o faturamento que os setores deixaram de registrar, as perdas somam cerca de 2 bilhões de reais. Outra entidade, a Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel), vai entrar com uma ação de perdas e danos contra a Enel. “Se vencermos, nossos filiados poderão entrar com pedidos de execução da sentença, reclamando aquilo a que têm direito”, afirma Percival Maricato, diretor da entidade.
Tão logo os primeiros raios começaram a tocar a metrópole, na mesma velocidade, o assunto virou o principal tema da tumultuada eleição municipal paulistana. De um lado, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) afirma haver um grande descaso por parte da Enel, que havia se comprometido judicialmente, e perante a opinião pública, a aumentar seus investimentos e suas equipes nas ruas. Autora de uma ação pedindo ressarcimento pelo apagão semelhante ao atual, ocorrido em novembro do ano passado, a prefeitura estava ensaiando uma composição amigável para encerrar o processo e melhorar a conexão entre as duas partes.
O ponto-chave do tema são as 650 000 árvores da cidade, que só podem ser objeto de poda e manejo por parte da prefeitura se estiverem fora do alcance dos fios de energia. Caso contrário, os serviços deverão ser feitos pela concessionária. Com a chuvarada e o apagão do dia 11, a relação voltou a azedar. “Não é que a relação estivesse melhorando, está em um processo normal de acordo judicial. Mas eles sempre querendo levar vantagem e, nós, defendendo a cidade”, afirma à Vejinha o prefeito Ricardo Nunes.
Além de mirar na Enel, Nunes vem fazendo críticas ao ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, que, em sua opinião, estaria agindo para renovar a concessão da empresa de energia, o que foi prontamente negado.
Do outro lado, o candidato a prefeito Guilherme Boulos (PSOL), que tem o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, vem atribuindo o caos paulistano à falta da ação do atual mandatário. “A Enel faz um serviço horroroso, mas o prefeito tem mais de 7 000 pedidos de podas não atendidos. O apagão tem pai (Ricardo Nunes) e mãe (Enel)”, diz Boulos, também à reportagem.
Procurada, a Enel não concedeu entrevista para falar das causas da interrupção do fornecimento na Grande São Paulo e nem o porquê das informações erradas passadas aos milhões de clientes.
Enquanto isso, a empresa segue sendo alvo de todos os lados. Além da ação da prefeitura e outra do Ministério Público na esfera estadual, a concessionária é cobrada pelo governo federal, pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, aliado de Nunes, que pediu ao Tribunal de Contas da União (TCU), na terça (15), uma intervenção na concessionária.
Na esfera política, o assunto vai perdurar até depois da eleição, marcada para o dia 27. No meio do caminho ficam os cidadãos paulistas, que passaram dias tomando banho de caneca, perderam toneladas de alimentos e ainda aguardam, para daqui a dois meses, o real período de chuvas.
Publicado em VEJA São Paulo 18 de outubro de 2024, edição nº 2915