“Nosso primeiro beijo foi em uma ocupação indígena”

Yamani quer Mirindju em uma cerimônia pataxó: a noiva se esconde na mata e o noivo deve levar um tronco com peso equivalente ao dela na busca

Por Yamani Kakau, 30 anos, em depoimento a Fernanda Campos Almeida
Atualizado em 27 Maio 2024, 20h35 - Publicado em 12 mar 2021, 03h00
Yamani Kakau ao lado de Mirindju, que leva o filho nos ombros
Kakau Gusmao e Mirindju com o filho, Karaí, de 3 anos (Alexandre Battibugli/Veja SP)
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“Indígenas não recebem o nome ao nascer. Primeiro, o bebê precisa colocar o pé no chão sozinho. Ele se conecta com a terra e algum líder espiritual, como o pajé, consagra o batizado em um ritual, entrando em contato com os ancestrais que guardam o nome do espírito da criança.

Batizaram-me Yamani na aldeia Xandó, reserva indígena do povo pataxó em Caraíva, na Bahia, mas nasci em São Paulo. Sou ativista pelo meio ambiente desde os 14 anos, quando me interessei pela luta da abertura do Parque Augusta.

Conheci meu marido guarani, Mirindju, 25, pelo Facebook. Eu visitava sua aldeia, Tekoa Pyau, no Jaraguá, para ver uma amiga, também cunhada dele. Às vezes me perdia no caminho até a casa dela e Mirindju me mostrava a direção. Um dia fui assistir a uma roda de capoeira na comunidade e ele estava lá. Não parava de me olhar, mas era tímido demais para falar comigo.

Ambos somos cantores. Ele é do grupo de rap indígena Oz Guarani. Assisti ao show deles na primeira fileira durante o YBY, festival de música indígena contemporânea. Depois ele apareceu na apresentação do meu grupo, Cabaré Feminista.

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Ele me contou que foi lá que percebeu que estava apaixonado por mim. Nosso primeiro beijo foi em uma ocupação. No ano passado, uma construtora iniciou um projeto perto da aldeia sem aval da comunidade. Diversas árvores foram cortadas. Os guaranis ocuparam o terreno para impedir a construção e eu participei da manifestação. Dormíamos no chão. Enquanto estava deitada no ombro do Mirindju, ele veio me beijar. Eu deixei. Nossa relação ficou mais forte, nossos corações se uniram durante essa luta.

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No começo deste ano, apareceu uma ferida na minha barriga. Tive de ser internada, sentia muitas dores, mas os médicos não descobriram o que era. A suspeita era de câncer, mas minha mãe afirmava ser um feitiço. A tia do Mirindju disse que era algo espiritual e que iria rezar por mim. Enquanto eles estavam na casa de reza, coloquei uma playlist no Spotify com cantos guaranis. Estava sozinha no quarto, mas senti segurarem minhas mãos. Na manhã seguinte não precisava mais da morfina e, horas depois, recebi alta. Sem o apoio deles, acho que hoje não estaria viva.

Tive dificuldades com relacionamentos. Não queria apresentar ninguém aos meus pais. Eles foram destratados por um ex-namorado abusivo. Meu pai falava algumas palavras erradas no português e eu ouvia que não era filha da minha mãe por ser mais branca que ela. Mas com Mirindju não tive inseguranças. Quando conheceu meu pai, ficou horas conversando sobre como construir uma casa de barro bem-feita.

Yamani, Mirindju e o filho Karaí posando para a câmera
Participação da família no clipe da música Filhos da Diversidade, de Fabio Brazza & Rapadura (Reprodução/Divulgação)
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Para os guaranis, não tem essa coisa de ‘ficar’ ou ‘namorar’. Vão direto para o casamento. Fizemos uma reunião com a família dele na casa de reza, e isso configura união estável. Quero levá-lo à Bahia para fazer a cerimônia do povo pataxó: a noiva se esconde na mata e o noivo deve levar um tronco com peso equivalente ao da mulher enquanto procura por ela. Ao achá-la, deve equilibrar a madeira de pé na frente da amada. Se o tronco cair ou o noivo não conseguir carregá-lo, o casamento não é realizado e a façanha pode ser repetida só no ano seguinte.

Nossas culturas são distintas. Por não ser guarani e não falar a língua oficial, diziam que eu iria atrapalhar o modo de vida deles. Lá, não há mestiços. Eu entendo. Apesar dos 521 anos de invasão de territórios e imposições culturais, eles conseguiram se preservar. Há aldeias no Jaraguá que aceitam outras etnias, desde que respeitem as regras, ajudem na comunidade e tenham compromisso com a Mãe Terra. A Tekoa Itakupe, onde estamos construindo nossa casa, é uma delas.

Eu e Mirindju gostamos de cuidar da horta juntos e escrevemos poesias. Escolhemos viver na comunidade indígena principalmente pelo meu enteado, Karaí, 3, para que ele aprenda a cultura. Aqui estamos ao ar livre e em contato com a natureza durante uma pandemia. Na cidade vejo pessoas depressivas, enclausuradas em apartamentos. Acho que a sociedade não indígena precisa aprender mais sobre o amor-próprio. Não dá para curar o outro sem antes nos curarmos. E como fazer isso se destruímos o que é vital para o corpo humano? Enquanto sufocamos as florestas, que filtram o ar, contraímos um vírus que nos impede de respirar. É extinção em massa. Encontrar o Mirindju é achar o amor verdadeiro em um mundo em colapso.”

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Publicado em VEJA São Paulo de 17 de março de 2021, edição nº 2729

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