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Os Mooquensers: moradores apaixonados do bairro mais bairrista da cidade

Ex-distrito industrial, a Mooca tem forte identidade, sotaque único e modo de viver peculiar, entre novos negócios e áreas ainda degradadas

Por Fernanda Campos e Guilherme Queiroz; colaborou Alice Padilha
Atualizado em 30 out 2020, 08h26 - Publicado em 30 out 2020, 06h00

Mooca é Mooca e o resto é bairro, mêo. Quem mora em qualquer outro distrito paulistano pode estranhar o orgulho exacerbado, mas na “porteira da Zona Leste”, como dizem alguns moradores, o estranho é não repetir as frases que estampam camisetas e decoram paredes de estabelecimentos do pedaço. Com dialeto, bandeira e time de futebol próprio, os mooquensers são facilmente identificáveis. O primeiro passo é ver a cor da camisa: o grená do Clube Atlético Juventus. Importante manter 1,5 metro de distância: também pela Covid-19, mas para não ficar no caminho do gestual frenético que parece cosplay de italiano.

O letreiro na entrada do bairro: mooquensers apaixonados (Guilherme Queiroz/Veja SP)

Depois de algumas conversas, dá para entender que nada é forçado, é só um lugar cheio de identidade. “Fica tranquilo, bello! Você cresce no bairro, em uma tribo e acompanha o que todos fazem. É da gente!”, diz quase cantando João Romero, 65, que mora no pedaço desde que veio ao mundo. Ele é um dos 96.393 moradores dos “Estados Unidos da Mooca”, espalhados em 12 milhões de metros quadrados, entre sobradinhos e edifícios. Para os não iniciados, há várias Moocas, em um conflito interessante entre futuro e passado, inovação e conservadorismo.

A Mooca vista de cima: galpões e prédios fazem parte do cenário (Guilherme Queiroz/Veja SP)

Nas ruas do bairro, galpões tombados pelo patrimônio histórico (mas infelizmente sem uso) e estabelecimentos octogenários contrastam com a Mooca que pulsa novidades. Na Rua Borges de Figueiredo, uma síntese desse momento. De um lado, a tradicionalíssima Di Cunto, fundada em 1935, e do outro, o restaurante Hospedaria, inaugurado em 2017, do chef Fellipe Zanuto, 34, que também comanda o café do Museu da Imigração, ali perto (outro item cultural que atrai quem é de fora do bairro é o teatro Arthur Azevedo).

Restaurante com toque imigrante: Fellipe Zanuto no Hospedaria (Rogério Pallatta/Veja SP)

O chef faz parte de um projeto chamado Distrito Mooca. Na companhia de José Américo Crippa Filho, 48, o Tatá, eles investiram em uma área que antes era muito pouco atrativa. A empreitada começou em 2016 com o Hospedaria e, em 2018, Tatá abriu ao lado o Cadillac BBQ, restaurante rústico que serve enormes peças de carne, também na Borges de Figueiredo. “A Mooca é um bairro tradicional e careta na gastronomia. Agora que está ficando mais jovial”, diz Tatá, que recebia antes da pandemia 6.000 pessoas por mês. Há poucos anos o trecho onde se localizam os empreendimentos era mal-iluminado e evitado pelos mooquensers. Uma das inspirações para o reúso da região foi o bairro Wynwood, de Miami, polo industrial transformado em galeria de arte a céu aberto. “Já me falaram: ‘Quem essa molecada acha que é para mudar nosso bairro? Vai trazer mais gente e criminalidade’, mas só valorizou a região”, diz Zanuto, que nasceu na Mooca.

Mônica Rodrigues (44) e Mozart Fernandes (49): arte vinda de Pinheiros (Rogério Pallatta/Veja SP)

A “molecada” tatuada acabou atraindo também outros moderninhos para o bairro que se prendia ao passado. Dois minutos de caminhada bastam para chegar até um quarteirão da Rua da Mooca que beira o Viaduto Professor Alberto Mesquita de Camargo. Em todo o “principado”, como os mooquensers gostam de chamar, dá para topar com barbearias cool e cafés de inspiração francesa. Os 35.000 metros quadrados entre o viaduto, a Rua Nilo Peçanha e a João Antônio de Oliveira concentram espaços como o estúdio de tatuagem Paint Black Tattoo, A Pizza da Mooca (também de Zanuto), o Brechó Bar e o estúdio Vértices Cenografia, mix de ateliê, espaço para tattoo, design e bar, todos inaugurados nos últimos cinco anos e atrativos para a nova geração do bairro e para quem vem de outras regiões.

Quem domina o mesmo quarteirão é a MAX Arena, aberta em 2016 em um galpão industrial. Ali, os apaixonados por games encontram 6.250 metros quadrados totalmente dedicados aos e-sports. O espaço mescla arena para competições, lan house gamer e estúdios utilizados por gigantes do setor, como a desenvolvedora Ubisoft, que aluga ali 170 metros quadrados. “A gente quer comprar todo o resto do quarteirão, mais 7.000 metros quadrados. O preço estimado é de 15 milhões de reais”, diz Vinícius Prado, proprietário, que investiu 2,7 milhões durante a pandemia em novas instalações no endereço. “Acredito que daqui a cinco anos isso aqui pode virar algo como a Vila Nova Conceição”, opina.

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João Lo Ré, 59: “todo mundo tem direito de trabalhar, mas eles (Mercado Livre) não fizeram estudo de impacto” (Rogério Pallatta/Veja SP)

Também interessado em investir na região, Fernando Parrillo, 52, presidente da Prevent Senior, comprou a antiga Fábrica da Cervejaria Antarctica, que está vazia desde 1995. “Ainda não há projetos concretos para o interior do prédio, mas a prioridade é a restauração”, afirma.

Fernando Parrillo, criador da Prevent: mooquenser ilustre compra a velha fábrica da Antarctica (Rogério Pallatta/Veja SP)

“Eu gostaria que não tivesse essa mudança. Sempre foi um bairro muito quieto”, pontua Ana Lúcia Rosa, do Programa Acolher, que atua na Mooca Baixa, pedaço mais degradado. Ela não é a única saudosista. “Eu não costumo sair muito de casa, não vou a restaurantes, prefiro pegar o dinheiro e fazer um belo almoço em família!”, diz Adriano Thomazetti, 46, torcedor do Juventus, claro. De filhos da Mooca que decidiram dar uma nova cara ao lugar aos que preferem fugir das mudanças, em todos o bairrismo é latente. “Quando me perguntam de onde eu sou, não falo que sou de São Paulo. Encho a boca para falar que sou da Mooca”, diz Daniel Martins, 42, que fechou as costas com tatuagens que representam o pedaço. “A Mooca é um bairro diferenciado de todos, é a nossa Miami”, afirma Cleverton Horta, da torcida organizada Ju-Jovem.

Daniel Martins, 42: bairrismo na pele (Rogério Pallatta/Veja SP)

A paixão fica escancarada na loja Di Mooca, que vende camisetas do Juventus na Rua Javari. Senhores de meia-idade portando correntinhas de metal nos pulsos e munidos de barrigas proeminentes adentram o endereço para comprar a sexta ou sétima camiseta do clube. Por ali as coleções costumam ter até quatro números acima do GG. “É o padrão da Mooca”, diverte-se Luiz Ribeiro, 57. Pode-se sair do uniforme-padrão mooquenser e encontrar acessórios para cachorros, chaveiros, canecas, body para bebês, camisetas com frases do tipo Mooca é Mooca e adesivos, que estampam uma enorme frota de veículos que circulam pelas ruas do bairro com o logo do Juventus. Talvez por Henrique Dias, 31, proprietário, e Luiz, pai do rapaz, sempre darem de brinde um colante após uma compra. “Aqui é normal o cara chegar antes de ir para o Aeroporto de Guarulhos, abre a mala, lota de camiseta e vai embora”, diz Dias, que mantém a coleção outono-inverno durante todo o ano, para atender os clientes que levam o Juventus para fora do país (também é tradição tirar foto com a camisa ou a bandeira do clube pelo mundo e mandá-la para ser postada nas redes sociais de páginas dedicadas ao bairro).

Ricardo, Brexó e Bianca, em frente ao Moocacycles (Rogério Pallatta/Veja SP)

Na Mooca, é comum encontrar moradores que estão na segunda ou na terceira geração da família no pedaço, sem que ninguém queira se mudar. “Você está na fila da padaria. É bom tomar cuidado para falar mal de alguém, o cara de trás pode ser parente ou amigo”, sintetiza José Ferreira Antônio, 79, publicitário, como se a Mooca fosse uma cidade do interior dentro de São Paulo. “Você não é daqui, né, bello?”, ouve com frequência quem chega para viver na Mooca vindo de outro local da cidade, como se fosse um forasteiro de algum lugar longínquo.

O outro pilar do bairrismo é o futebol. Mas o que há de tão especial no Juventus, clube que disputa a segunda divisão do Campeonato Paulista? “A nossa torcida é família. Tem muita mulher, criança. O ambiente é gostoso”, diz Antonio Ruiz Gonsalez, que reclama que a paixão não se estende ao clube social, que passa por uma crise financeira, com a inadimplência de 70% dos sócios. “É um clima de antigamente. Futebol raiz”, diz Gustavo Almeida, 36, conselheiro do clube. E por falar em tradição, é impossível mencionar o bate-bola grená sem mencionar Antônio Garcia, 70, o seu Antônio. Desde os 10 anos de idade ele vende cannoli. “O doce virou tradição. Tem esposa que não deixa o marido ir ver o jogo se ele não levar uma bandejinha de cannoli”, diz ele, que aguarda ansiosamente a volta da torcida ao estádio.

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Antonio Ruiz Gonsalez, 79, presidente do Clube Juventus: “o sócio só olha para o próprio umbigo” (Guilherme Queiroz/Veja SP)

Uma das críticas ao bairro, de quem consegue olhar além da paixão, é um inadequado conservadorismo. “Você imagina um estádio machista. Aí você imagina a Javari, é dez vezes mais. Principalmente os mais velhos”, comenta Gustavo Almeida. “É um bairro conservador. Apontam para travestis nas ruas e eu tento explicar que é gente como a gente”, diz Mônica Rodrigues Fernandes, da Vértices. Uma exceção é a drag queen Charlene Blue, que participa de eventos no clube. “Nunca sofri preconceito no bairro, nem com público da Javari”, diz Charles Matias, 48, estilista que dá vida a Charlene.

Adriano Thomazetti, 46: “A Javari não é cannoli! É jogo do Juventus!” (Arquivo pessoal/Veja SP)

Para além da Javari, os embates do bairro costumam ter também outro endereço certo: a Mooca Baixa, comumente vista com preconceito por quem vive nas áreas do bairro consideradas mais nobres. Espremida entre a Linha 10-Turquesa da CPTM, a Avenida Alcântara Machado e a Avenida do Estado, a região é evitada por quem mora do lado direito da linha do trem, onde ficam o Alto da Mooca e o Parque da Mooca. O pedaço ainda não deu sorte de conhecer uma iniciativa como o Distrito Mooca e acumula imóveis vazios, que acabam sendo utilizados como moradias precárias por sem-teto. “Nas atividades da igreja na parte da noite, pouquíssimas pessoas aparecem. Justamente pela falta de segurança. Tentaram invadir o salão da igreja durante a pandemia para fazer uma ocupação”, diz o padre Wellington dos Santos, da Paróquia de San Gennaro. A localidade concentra moradores de rua, usuários de drogas e imigrantes bolivianos e haitianos, que dividem teto com os brasileiros nas moradias irregulares. “Vim pra cá há quatro anos. É o lugar que a gente consegue viver”, diz Kesta Petion, 45, que chegou do Haiti e mora no Tijolinho da Mooca, nome da ocupação na tombada Fábrica de Tecidos Labor, na Rua da Mooca, onde vivem irregularmente cerca de 3.000 pessoas.

Giovania de Oliveira, 37, e os filhos Isaac, 5, Kemilly, 9, e Sofia, 7: “já fui alvo de preconceito no próprio bairro.” (Rogério Pallatta/Veja SP)

Segundo a Cognatis, a renda média familiar na Mooca Baixa é de cerca de 5.900 reais, enquanto do outro lado da ponte, o índice chega a 10.500 reais. A degradação também pega no valor médio dos apartamentos. Uma unidade ali fica na média dos 390.000 reais, já a parte nobre registra 673.000 reais.

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No Índice de Exposição a Crimes Violentos do Instituto Sou da Paz, o 57º DP do Alto da Mooca fica em décimo na lista dos bairros mais seguros da cidade, com dados de junho de 2019. Levando-se em conta apenas a estatística de crimes contra a vida, ou seja, homicídios e latrocínios, a região é uma das treze das 87 analisadas que não registraram nenhum crime do tipo. A Mooca Baixa é de responsabilidade do 8º DP do Brás, que figurou entre os dez piores índices de segurança da cidade no mesmo mês. Em crimes contra a vida, o DP fica como o segundo pior.

Moisés Antônio Naif, 50: “Se os vereadores da Mooca trabalhassem, eu não teria tanto trabalho”, (Rogério Pallatta/Veja SP)

“Eu já fui assaltada aqui umas cinco vezes”, diz Neusa Gomes, 79. Curiosamente, a insegurança da região está longe de afastar a idosa, que há quarenta anos é voluntária na tradicional Festa de San Gennaro. “Mooca é Mooca, e é a minha casa! Só penso em sair quando morrer!” Ao contrário de alguns dos amigos de mais idade, é fervorosamente a favor de condomínios no lugar de sobrados e galpões. “Eu acho que, se fizessem mais edifícios aqui, ia melhorar muito”, diz ela, que mora a 400 metros da paróquia. “A maioria fica trabalhando na festa até morrer! Eu tenho uma amiga que morreu fazendo sardella durante a San Gennaro. Foi uma tristeza.”

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Pura Mooca: Dona Neusa e seu Antônio, macarronada e cannoli (Rogério Pallatta/Veja SP)

As incorporadoras até querem atender ao desejo de Dona Neusa, mas a legislação ainda dificulta. Segundo o DataZAP, a Mooca tem uma taxa de verticalização (porcentagem de apartamentos em relação ao total de imóveis) de 59%. Acima da média da capital, de 28%, mas ainda perdendo para os vizinhos Brás, com 68%, e Tatuapé, 62%. O gabarito máximo de altura para edifícios em boa parte do bairro é de 28 metros. “A Mooca tem boa infra-estrutura de transporte (metrô, estação de trem, corredores de ônibus) e é perto do centro. Ela ainda não está em todo o seu potencial”, aponta Luiz França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias. “Vinte e oito metros é um prédio de oito andares. Muito pouco. No final, o valor do condomínio fica mais caro. Isso precisa mudar.” Parte do entorno da Paes de Barros é o melhor pedaço para a construção de edifícios, afirma. Um projeto de lei da gestão Fernando Haddad (PT) tramita vagarosamente na Câmara, e permitiria mais adensamento na região próximo ao Tamanduateí. “Destravaria do ponto de vista do potencial construtivo”, diz França.

As variações de preço na Mooca: metro quadrado mais barato é o próximo à problemática Avenida do Estado (Rogério Pallata / Data Zap/Veja SP)

Enquanto parte da Mooca olha com certa inveja o enriquecimento do vizinho Tatuapé, discute-se a realização do seu enorme potencial, incluído o charme fabril, antes dos erros que criaram bairros genéricos. A nova Mooca será mais parecida com a Rua dos Pinheiros ou Santa Cecília, atraindo gente esperta da cidade e mantendo os jovens mooquensers no bairro? Ou vai ganhar condomínios-clube fechados, sem personalidade, como Barra Funda ou Ipiranga? “O trânsito piorou muito”, diz Gilberto Luizetto, do tradicional Giba’s Bar. Aos 70 anos, ele toca o endereço na Rua Javari, aberto pelo seu pai em 1964. “A gente ama a Mooca, mas já estou cansado.” Ele pretende passar o ponto por 150.000 reais. Será que vem mais um estúdio de tatuagem por aí?

CAPA mooca
(VejaSP/Veja SP)

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 4 de novembro de 2020, edição nº 2711.  

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