Quem merece presente no Natal? A antiga canção dizia que é melhor você ser bom porque é o dia dos bons, e o velho Noel sabe quem foi bom ou não.
Fomos uma geração de bons meninos. E acreditem: em boa parte por causa dos heróis dos quadrinhos. Éramos viciados em gibis. Nosso ideal do bem, e mesmo a prática, pode ser creditado ao Batman & Cia. tanto quanto ao medo do inferno, aos valores da família e aos ensinamentos da escola. Os heróis eram o exemplo máximo de bravura, doação pessoal e virtude.
Gibis abasteciam de ética o vasto campo da fantasia infantil, sem cobrar pela lição. Não era só por exigência da família, da escola ou da religião que os meninos tinham de ser retos e bons; eles queriam ser retos e bons — como os heróis. Viviam o bem na imaginação, porque o bem era a condição do herói. A lei e a ordem eram a regra dentro da qual transitavam os heróis. Eles eram o lado certo que combatia o lado errado.
Atualmente não sei. Parei de ler gibis, só pego um ou outro da seção nostalgia. Nos anos 70 e 80, ainda surgiram heróis interessantes, mas alguns parecem cheios de ódio, como o Wolverine, ou vítimas confusas sem noção de bem e mal, como o Hulk, ou exilados freudianos, como o belo Surfista Prateado, ou presas possíveis da vaidade, como o Homem-Aranha. Complicou-se a simplicidade do bem. Na televisão, os heróis urram, gritam, destroem, torturam, estridentes como os arquiinimigos maléficos. Não são simples, e retos, e fortes, e afinados com seus dons, como os heróis clássicos; são complexos, e dramáticos, e ambíguos, como ficou o mundo.
O Capitão Marvel salvava o planeta, gritava “shazam” e voltava a ser o pequeno locutor de rádio Billy Batson. Mandrake fazia um gesto hipnótico e a arma do bandido virava uma flor. O Príncipe Submarino atravessava oceanos a nado livrando-os do Mal. O Super-Homem parava com as mãos um trem com vítimas em perigo. O Homem-Borracha esticava- se no asfalto e salvava a criancinha no alto do prédio. Dick Tracy corria com seu relógio falante e sua lanterna e iluminava um crime. O misterioso senhor Walker ti rava o sobretudo, o chapéu e os óculos escuros, tornava-se o Fantasma e marcava o queixo dos bandidos com o anel de caveira. O Tocha Humana e o amigo Centelha incendiavam- se e torravam os malfeitores. O Homem-Morcego e Robin atendiam ao chamado do holofote que projetava nos céus a imagem do morcego e destroçavam os inimigos do Bem com incríveis acrobacias. Flash Gordon derrotava o Mal em planetas distantes. O Príncipe Valente e a espada cantante defendiam a princesa Aleta e o reino contra os bárbaros.
Queríamos ser virtuosos como eles — ah, como queríamos, nós, pequenos, confusos, medrosos e nem sempre sabendo ser bons.
A generosidade deles, a sempre disposição para ajudar alguém em dificuldades! Não tenho e não conheço quem tenha essa virtude, nesse grau, mas acalento a expectativa otimista de que ela se manifeste algum dia em alguém que eu conheça — não em mim, modesto de santidades e preguiçoso de ações, mas em alguém.
A renúncia, a idealização do sacrifício! Ah, os heróis abriam mão de necessidades pessoais, do amor de sua vida, arriscavam a vida no cumprimento da missão que se impuseram. Atividades particulares, noivas, afetos, bens, tempo, compromissos, tudo ficava em segundo plano. Quem nos dera chegar a esse ponto de renúncia — nunca, mas o ideal ficou.
E a modéstia? Muitos tinham uma identidade secreta, não visavam ao aplauso pessoal. Longe deles a pretensão do brilho e a tentação das revistas de celebridades. E a coragem? Nada havia que os intimidasse. Eu? Tenho mudado de calçada, desconfiado de que a diferença entre um cão e um leão é a jaula. Prudência, digamos assim, que não me impede de admirar a coragem.
Difícil avaliar quanto dessas virtudes resistiu dentro de nós. As habilidades e os superpoderes certamente convivem conosco no campo dos sonhos e delírios.