A localização não podia ser melhor. No sentido centro está a Fecomercio, simbolizando o espírito aguerrido de nossos negociantes. Na direção do bairro fica a tecnologia de ponta do Hospital Sírio-Libanês, verdadeira referência em saúde na cidade. E é entre os dois prédios de arquitetura moderna, sem usufruir do apadrinhamento de nenhuma das instituições, que vem nascendo uma favela. Não é um evento explosivo. Pelo contrário, é lento, como convém a um organismo gerado no ventre da metrópole.
Começou como uma espécie de acampamento sob o pavoroso viaduto de concreto que cobre a Praça 14-Bis, na Bela Vista. Quando o número de condôminos atingiu um patamar indisfarçável, o poder público tomou providências: cercou o vão do lugar com tapumes ecológicos (é o que está escrito neles) e deu o caso por resolvido. Se antes o agrupamento de sem-teto parecia improvisado, agora ganhava o visual de uma favelinha de verdade.
A cada semana, aparece um novo amontoado de papelão, cobertor e trapos, poeticamente chamado de barraco. Vai-se ver, é mais que isso. É um lar. Um sofá, um colchão e uma TV colorida, ligada na mais legítima clandestinidade, dão o ar de casa. Há sempre um fogareiro aceso, cozinhando o prato da hora. Bichos de estimação completam o quadro. São cachorros grandes, altivos, fiéis na alegria e na tristeza, na saúde e na doença. Com os cacos que a cidade despreza, aqueles sem-teto constroem seu castelo.
Como quase todo morador de cidade grande, os desvalidos procuram abrigo perto de onde ganham o pão. É nas ruas do centro que eles encontram papelão, roupas, comida e barracas de camping. Por isso, fracassam as tentativas de forçá-los a ir para bairros distantes, onde as chances de faturar um troco são escassas. Poderiam ir e voltar de ônibus, mas o dinheiro da passagem faz falta. E, sinceramente, motoristas, cobradores e passageiros torceriam o nariz à sua entrada. Morador de maloca só tem graça mesmo em samba do Adoniran Barbosa.
É uma sinuca de bico. Aqui não querem que fiquem, lá longe eles não desejam morar. Mesmo se quisessem, seria difícil achar quem aceitasse levá-los ou tê-los como vizinhos. O cidadão que paga impostos se sente agredido. O poder público, que cobra os impostos, vai do paternalismo ineficaz ao autoritarismo inábil. Deixa o problema crescer e ganhar corpo para, depois, descer o relho. E eles, os eternos desfavorecidos, que não pagam, mas tampouco desfrutam os impostos, transformam-se em arremedo de Blanche Dubois, a triste protagonista de Um Bonde Chamado Desejo: sobrevivem apenas da caridade de estranhos.
Eles não deveriam ser lembrados apenas quando incomodam nossa visão e nosso olfato. Ou quando há alguma eleição na linha do horizonte. Pode ser que, por enquanto, sejam apenas um barraco aqui, outro ali, proliferando no coração do Bixiga, acendendo fogueiras que espantem o frio nas noites de inverno. Mas o fogo cresce, toma conta e pode corroer até o mais sólido concreto. Quando não houver jeito de passar com seu carro oficial sem ser incomodadas pela realidade, as autoridades convocarão grupos de estudo e tomarão atitudes inutilmente compulsórias. Nossos paulistanos sem-teto já terão levado seus cacarecos um pouco mais adiante, ocultos, mas não protegidos, pelo manto cruel da invisibilidade.