Histórias de travessuras de velhos são tantas quanto as de crianças, e em muitas delas a graça é rival. A partir de incerta idade, a autocensura vai diminuindo, o espírito se solta, a vontade fica à espera de oportunidades, de uma distração dos que vigiam. Quando eu morava na Superquadra Paulistânia, em Perdizes, um velhinho resolveu fugir de casa. Hoje chamam tudo que os idosos aprontam de Alzheimer, na maioria das vezes impropriamente; há mais tempo chamavam de caduquice, com algum preconceito ou maldade.
Prefiro supor, melhormente, que eles vão se desfazendo devagar dos oitenta anos de juízo que botaram neles. Esse velhinho de Perdizes sumiu, deu um dia inteiro de preocupação à família, e parte da noite, quando avisaram que ele estava zanzando pelo Brás, onde havia morado quando criança. Já em casa, explicou que estava passeando e não soube voltar: “De bonde eu sabia”. Enfim: o que mudou foi o mundo.
Essa do poeta gaúcho Mário Quintana é mais uma travessura de velhinho, mas acho-a encantadora. Ele estava hospedado no hotel Laje de Pedra, em Canela, e de manhã, sozinho, sentou-se no refeitório ao ar livre, tomou um bom café, respirou fundo o ar puro, deu palmadinhas de satisfação no peito magro, filou um cigarro do garçom, tragou fundo e revelou:
— Na cidade de Porto Alegre eu parei de fumar. Mas aqui ninguém sabe disso.
Uma amiga se preocupa com a mãe que toma banho três ou quatro vezes por dia. Acha que ela esquece que já havia tomado banho e toma outro, e outro, e outro; minha amiga diz que é a síndrome. Pode ser, mas para uma vizinha a mãe explicou:
— Eu gosto de tomar banho, ela não entende.
A idade traz mesmo problemas de desgaste, da vista, da audição, da agilidade, do equilíbrio, da memória, da potência… O poeta inglês T.S. Eliot fala com bom humor do velho precoce: “Os anos entre os 50 e os 70 são os mais difíceis. Você vive sendo solicitado a fazer coisas e ainda não se sente alquebrado o bastante para se recusar a fazê-las”. O físico pesa depois dos 80, o jeito é compensar com o espírito. Um sábio professor e intelectual mineiro, Aires da Mata Machado, péssimo de vista, que não enxergava literalmente um palmo adiante do nariz, esperava uma condução no ponto e um homem perguntou qual era a placa do ônibus que se aproximava. A travessura lampejou no velho Aires:
— Desculpe, eu também sou analfabeto.
Uma senhora que conheci desde jovem, católica de reza diária, de joelhos, com terço nas mãos antes de dormir, pudica a vida inteira, preconceituosa quanto a roupas e hábitos, de repente largou aquilo, perto dos 90 anos, largou-se. Nem andava mais. Folheava revistas, parava em fotos de homens bonitos de propagandas de sunga ou cueca, beijava as páginas, murmurava: “Gostoso! Gostoso!”. Me ocorria o verso de Manuel Bandeira: “A vida inteira que podia ter sido e que não foi”.
E a gerente do supermercado conta a minha mulher que se preocupa com a mãe: ela insiste em dirigir carro aos 88 anos. Um perigo. Deliciada com a prioridade nas filas de cinemas, teatros, bancos e serviços públicos, com as vagas reservadas para idosos no estacionamento dos shoppings, supermercados e mesmo nas ruas, não dispensa seus direitos. A filha saiu de carro com a mãe ao volante e horrorizou-se quando a velhinha cruzou a rua com o sinal vermelho.
— Mãe, sinal vermelho!
E ela, imperturbável, dando a entender que sempre fazia isso:
— Eu sou idosa, tenho prioridade!