Maria Adelaide Amaral, senhora dramaturga
Aos 65 anos, grisalha assumida e avó coruja, a escritora Maria Adelaide Amaral mergulha pela sexta vez no mundo das minisséries com Queridos Amigos.
Ela reza sempre que se senta para trabalhar, mas usa palavrões com tal desenvoltura que já surpreendeu a desbocada Dercy Gonçalves. Milhares de pessoas viram ou ouviram falar de seus textos e, mesmo assim, consegue flanar, anônima, em meio às tumbas do Cemitério do Araçá, no Pacaembu, ou pelas lojinhas descoladas da Galeria do Rock, no centro. Não perde a missa do fim de semana e curte muito astrologia. Sua voz, confiante e firme, não só disfarça os 65 anos de idade como parece acrescentar alguns centímetros a seu 1,50 metro de altura. O universo de Maria Adelaide Amaral, escritora que cativou o público por fazer das emoções e pessoas à sua volta a matéria-prima de peças, livros e novelas de sucesso, é exatamente assim: cheio de contrastes.
Portuguesa de nascimento, paulistana por adoção, ela volta à cena a partir de segunda (18) com o sexto exemplar de um gênero em que se especializou nos últimos oito anos, as minisséries. É quando estréia na Rede Globo Queridos Amigos, em que, pela primeira vez, parte de um romance de sua autoria, Aos Meus Amigos, de 1992. “Não foi fácil revirar esse baú de memórias”, conta, com os olhos marejados. Dá para entender o motivo. Maria Adelaide costuma rechear seus textos de personagens baseados em amigos e conhecidos em geral, uma forma de homenageá-los. Assim é em Aos Meus Amigos (veja quadro ). Lançado em 1992, o livro mostra o reencontro de amigos de longa data, uns estremecidos, outros de relações cortadas, durante o velório de Leo, inspirado no jornalista Decio Bar e vivido na televisão por Dan Stulbach – na minissérie, ele será vítima de uma doença terminal e simulará a própria morte. Foi enquanto pesquisava para escrever o romance que Maria Adelaide desenvolveu um hábito mantido até hoje: passear por cemitérios. “Vejo apenas um lugar agradável e arborizado”, explica. Ela e Decio Bar haviam sido unha e carne em 1960, no Colégio Estadual de São Paulo. Aluno do 3º científico, ele percebeu na mocinha do 1º clássico uma pupila em potencial. Apresentou-lhe, então, livros de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e Albert Camus. Cabulavam aulas para assistir a filmes franceses no Cine Coral, na Rua Sete de Abril, ou recitar poesias no Viaduto do Chá. “Estávamos juntos de segunda a segunda, mas jamais namoramos”, afirma, categórica.
Hábil com as palavras, Maria Adelaide sabe dosar suas respostas numa entrevista. Repete numa boa a história de sua família, que em 1954 trocou Portugal por São Paulo. Lembra de suas impressões ao chegar por aqui, com 12 anos de idade. No entanto, pisa em ovos ao falar do pai, Manuel, com quem sempre teve uma relação conturbada. “Ele era gentil com as pessoas na rua, mas em casa virava outro homem”, diz. Adora relembrar casos das dezenas de amigos que entraram em sua vida na época em que trabalhou como costureira numa fábrica de camisas (e, depois, como escriturária, vendedora e bancária) e da turma com que conviveu na editora de livros e fascículos Abril Cultural, na década de 70. Atuou ali como pesquisadora e, mais tarde, jornalista (formou-se pela Faculdade Cásper Líbero em 1978). “Foi a fase mais divertida da minha vida.”
Não por acaso, seu texto de estréia, a peça A Resistência, de 1975, tem como cenário uma redação. A primeira a ganhar os palcos, porém, foi Bodas de Papel, três anos mais tarde. Suas preferidas são De Braços Abertos, de 1984, e Mademoiselle Chanel, de 1991, montada em 2004. Em 1979, arriscou dividir-se entre o trabalho como jornalista e co-autora da novela Os Gigantes, de Lauro César Muniz. “Televisão exige dedicação exclusiva”, lembra, sem saudade. Retornou somente onze anos mais tarde, quando Cassiano Gabus Mendes a convocou para a equipe de autores de Meu Bem, Meu Mal. Trabalhou com Silvio de Abreu em seguida e, em 1997, encarou sozinha a missão de reencenar Anjo Mau, dos anos 70.
Foi nas minisséries que se descobriu (sobretudo porque o ritmo de uma novela – em média trinta páginas por dia – não permite o mesmo cuidado que gosta de dar a um capítulo de série). Sucessos como A Muralha, A Casa das Sete Mulheres, Um Só Coração e JK lhe garantiram prestígio na Globo e contratos cada vez mais gordos. Estima-se que Maria Adelaide ganhe cerca de 150 000 reais por mês – quando não está no ar, esse valor cai 40%. Renovou em 2006 por seis anos.
Toda manhã, depois de caminhar ou de encarar sessões de pilates, pede inspiração ao Espírito Santo, senta-se e escreve até as 20 horas. Vez ou outra solta um filho disso, vai isso, vai aquilo, o que a aproximou de Dercy Gonçalves nos anos 90. “Você fala palavrão direitinho. Podia ser minha filha”, comentou a ex-vedete, que no ato a convidou para escrever sua biografia. “Não tem uma carga negativa para mim”, diz Maria Adelaide. “Palavrão é o mesmo que uma interjeição.” Quem convive com ela não estranha nem o vocabulário nem alguns rompantes de fúria. Minutos depois da explosão, volta ao comportamento gentil de costume. Objetiva e exigente, ganhou do dramaturgo Walter Negrão o apelido “Sargenta”, durante as gravações de A Casa das Sete Mulheres. Foi promovida a “Generala” logo depois pelo diretor Jayme Monjardim. Tudo no maior bom humor. “Gosto de trabalhar com quem vê meu coração de manteiga por baixo da casca-grossa.”
Isso fica evidente quando, durante a entrevista, ela muda o tom sério de voz para saudar um dos três netos, que acaba de acordar e chega à sala de estar. Comporta-se como qualquer vovó, em busca de beijos e carinhos. “Como avó ela é uma beleza, mas como mãe parecia uma governanta alemã”, diz, gargalhando, seu caçula, Guilherme, de 35 anos. Maria Adelaide evita a todo custo fotos dele e do primogênito, Rodrigo, quatro anos mais velho. “Quem teve parentes seqüestrados não se descuida”, explica, referindo-se aos 38 dias que seu irmão Américo passou em cativeiro, em 1983. Outro assunto sobre o qual não fala é seu casamento de três décadas com o administrador de empresas Murillo Amaral, de quem se separou em 1995. Desde então, nunca mais assumiu publicamente nenhum romance. Sente falta de namorar, Maria Adelaide? “Quem disse que estou sozinha? Tenho uma pessoa há muitos anos, mas não conto de jeito nenhum quem é”, responde, fazendo charme, com um sorrisinho. E muda de assunto.
Suas horas de trabalho são muito bem recompensadas com lazer. “Saio todo dia”, afirma. O programa número 1 é jantar com amigos como a psicóloga Lidia Aratangy – outra que vira e mexe aparece como personagem em seus textos. Aprecia um bom vinho. Jamais daqueles que custam centenas de reais. Às vezes toma um dry martini. “Mas já fui uma grande bebedora de uísque”, diz. Ela conta que experimentou maconha e cocaína uma vez. “Não achei a menor graça.”
Bate cartão nos restaurantes La Frontera e Carlota, ambos em Higienópolis, bairro onde vive há dez anos. A chef Carla Pernambuco lembra um caso curioso sobre o jeito discreto da cliente. “Era a noite de lançamento de um livro meu”, diz. “Maria Ade-laide foi a primeira a chegar. Comprou três exemplares e deixou o lugar antes de ser notada.” Vai muito ao teatro e ao cinema, mas evita pré-estréias por causa dos fotógrafos. “Só vou quando algum amigo muito querido participa da peça”, explica. Outro programa constante – exceto se está trabalhando – é promover jantares no apartamento recheado de quadros e livros, onde vive com seus gatos, Bibelô e Miu-Miu. Às vezes, vai para o fogão, onde prepara especialidades com um pé na culinária lusitana, como arroz de lulas e bacalhau caramelado. “Adelaidinha fez uma reforma na sala de jantar para caber mais gente em volta da mesa”, conta a atriz Irene Ravache, uma das convivas habituais. Nessas ocasiões, faz piadas, dança bolero muito bem e às vezes solta a voz – adora a canção The Man I Love, dos irmãos Gershwin. “Ela conseguiria viver sozinha, mas prefere cercar-se de pessoas queridas”, define Lidia, amiga desde os anos 80. Na época, ela teve um linfoma e Maria Adelaide ficou ao seu lado durante o tratamento. Uma década mais tarde seria sua vez de precisar de conforto. Em 1997, numa consulta com o astrólogo Assuramaya, foi informada de que precisava procurar um médico, pois tinha um nódulo no seio direito – que já havia detectado dois anos antes, mas considerava sob controle. Venceu a doença com uma quadrantectomia (cirurgia que remove um quarto da mama) e radioterapia. Consultou-se com o badalado “bruxo” até sua morte, em setembro passado. Hoje é cliente de Graça Medeiros, outra estrela da adivinhação. “Gosto de ouvir astrólogos para escolher a data mais adequada às minhas estréias”, conta. “Graça me disse que Os Maias foi um fracasso porque entrou no ar num eclipse lunar.” Quanto ao início de Queridos Amigos, ela está tranqüila. “Dia 18 será noite de lua crescente.”
Uma história para cada época
QUERIDOS AMIGOS (2008) – Divide-se em duas fases. Mostra a turma empolgada, no auge de seu momento riponga, em 1978, e o reencontro, onze anos mais tarde, por causa do amigo doente. A série entra no lugar de Nassau, projeto que Maria Adelaide tocou durante um ano, cancelado porque cada episódio custaria 1,3 milhão de reais. O ator Dan Stulbach sugeriu que ela utilizasse um de seus próprios livros, Aos Meus Amigos, de 1992
JK (2006) – para contar a saga do presidente Juscelino Kubitschek, Adelaide e Alcides Nogueira, seu colaborador, entrevistaram mais de oitenta pessoas que conheceram o criador de Brasília, vivido na série por José Wilker
OS MAIAS (2001) – Adaptação da obra de Eça de Queiroz, impressionou pela qualidade da produção, que teve um custo de 250 000 reais por episódio. A audiência não passou dos 14 pontos, metade do esperado
UM SÓ CORAÇÃO (2004) – Yolanda Penteado (Ana Paula Arosio, na foto com o ator Omar Docena) e personagens que agitaram São Paulo entre 1922 e 1954 foram um presente pelos 450 anos da cidade
A CASA DAS SETE MULHERES (2003) – Acostumada a receber dezenas de livros como sugestão para futuras minisséries, ela arriscou-se num romance sobre a Revolução Farroupilha. De 9 000 cópias vendidas em 2002, saltou para 55 000 depois da série fernando martinho
A MURALHA (2000) – Numa reunião, perguntaram à escritora que livro renderia uma minissérie para comemorar os 500 anos do descobrimento do Brasil. De supetão (ela prefere dizer “intuição”), sugeriu A Muralha, de Dinah Silveira de Queiroz