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Bastidores da capa com ex-modelo que vivia na Cracolândia em 2014

"A magreza de Loemy não era típica de modelo, mostrava que o uso da droga havia atingido seu limite", relembra repórter

Por Adriana Farias Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
23 out 2020, 06h00

Eram 8 horas de uma manhã de outubro de 2014 quando me encontrei pela primeira vez com a ex-modelo Loemy Marques, na época com 24 anos, nas ruas da Cracolândia. Após meses a fio usando crack e recusando a aproximação de agentes sociais e de saúde, ela havia concordado em tomar um banho naquele dia em uma das tendas da prefeitura montadas na região. Aquela situação foi decisiva para nos aproximarmos.

Descobri a história de Loemy após ter ido ao local para escrever o perfil da pastora Nildes Nery, que desempenhava papel social fundamental na recuperação dos dependentes químicos. Enquanto eu aguardava pela religiosa sentada na calçada de uma das ruas da Cracolândia, área em que já estava acostumada a fazer coberturas, ouvi usuários de drogas e ela própria dizendo depois que teria uma possível modelo do interior de Santa Catarina vivendo ali — na verdade, era de Mato Grosso. Diziam que era extremamente arredia e ninguém conhecia sua história. Isso me inquietou.

Comecei a ir quase todos os dias à Cracolândia para conhecê-la. Chegou um momento que passei a desconfiar que ela não existia, tamanha a dificuldade de achá-la. Até que a encontrei debilitada em meio ao fluxo (nome que se dá à aglomeração de usuários). Alguns de seus traços de beleza ainda resistiam, apesar das muitas cicatrizes no corpo. Tinha os joelhos feridos e os pés rachados e sujos pelo tempo dormindo na rua. Os dedos estavam queimados, de tanto acender os cachimbos de crack. A magreza não era típica de modelo, mostrava que o uso da droga havia atingido seu limite.

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Capa da revista VEJA São Paulo de 26 de Novembro de 2014: “Eu preciso de ajuda” (Veja SP/Veja SP)

No dia que Loemy saiu daquele banho limpa e com um vestido novo resgatado da rua quando um camelô fugia de um “rapa”, ela se sentiu mais confortável e permitiu que me aproximasse e me identificasse como jornalista. Ali criamos um vínculo. Foram horas de conversa sobre temas que não faziam parte daquele território, como a cor azul-escura dos nossos esmaltes, que combinavam. Eu a convidei para almoçar no Bom Prato (almoço a 1 real) e ela aceitou. Mostrou-se tranquilizada, já que não a levaria a um lugar que a pudessem recriminar pelas marcas da rua e do crack. Loemy não assistia passivamente ao definhamento de seu corpo. Ela manifestava abjeção consigo própria e se via como fracassada por não ter conseguido despontar na carreira de modelo. Culpava a mãe por não ter lhe dado carinho e atenção (ela trabalhava em dois empregos como doméstica e cozinheira) e também por não ter procurado a polícia quando foi abusada sexualmente pelo padrasto dos 4 aos 10 anos.

Fiz três longas entrevistas com Loemy em ao menos um mês indo quase que diariamente ao local. Havia dias seguidos que Loemy sumia, inebriada pelo efeito do crack. O momento final para a fotografarmos foi um dos mais difíceis. Precisei negociar com os traficantes do pedaço a permissão para que pudéssemos fazer as imagens dela na Cracolândia — o que só foi permitido depois de explicar que o intuito era contar a história dela e não denunciá-los. Loemy também hesitava em ser fotografada. “Não me olho no espelho, senão eu choro, me deprimo mais.” Fazer aquelas fotografias só foi possível após um vínculo de extrema confiança e respeito que criei com ela. O preparo, a sensibilidade e a humildade do fotógrafo Mário Rodrigues também foram fundamentais para o resultado final.

No dia que a revista saiu da gráfica (antes de chegar às bancas), peguei um exemplar e fui à Cracolândia. Encontrei Loemy dormindo no chão ao lado de outros usuários. Agachei e sussurrei em seu ouvido para que acordasse. Balancei-a diversas vezes, mas ela estava sob efeito da droga e havia ficado noites em claro. Na manhã de 22 de novembro de 2014 a revista chegou às bancas e meu telefone não parou de tocar. Fontes na Cracolândia me informavam que a imprensa estava em peso atrás de Loemy. Foi assediada sobretudo por programas de TV, que queriam a todo custo entrevistá-la. A repercussão foi internacional e inspirou uma novela da Globo. Ao longo desses seis anos, continuo acompanhando Loemy e pretendo escrever um livro sobre o que vivemos. Ela passou por tratamentos de saúde, chegou a recair e a retornar por poucos dias à Cracolândia, recuperou-se, concluiu o ensino médio, reaproximou-se da família, namora um homem batalhador, e hoje está bem, vivendo em uma cidade do interior. Ela diz que eu transformei a vida dela, mas foi ela quem também mudou a minha.

Nas redes sociais, alguns nos tacharam de racistas por dar na capa uma história como a dela. O fato é que nós reconhecemos naquela vida algo digno e valioso a ser reportado e representado publicamente. Não foi por ela ser uma mulher branca, mas pelo contexto de tudo que ela havia vivido. A história de Loemy, após a reportagem, gerou empatia, jogou luz sobre a Cracolândia e quebrou a homogeneização dos corpos vistos de fora.

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Publicado em VEJA São Paulo de 28 de outubro de 2020, edição nº 2710.

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