Leonardo Jun Sakamoto é reverenciado como o sushiman número 1 do Brasil
Com fama de chato e mal-humorado, o paulista Jun Sakamoto, o mais premiado chef de cozinha japonesa que o Brasil já teve, ganha um livro requintado sobre sua arte
Em São Paulo, onde existem hoje cerca de 600 lugares que servem comida japonesa – um número 20% maior do que o de churrascarias –, calcula-se que sejam consumidos em média 12 milhões de sushis por mês. Nesse universo dominado por cardumes de salmão, barris de saquê, rios de shoyu e florestas de hashis, a imensa maioria dos consumidores que devora temakis nas praças de alimentação ou encomenda combinados pelo telefone provavelmente jamais ouviu falar de um sujeito considerado mal-humorado que atende com hora marcada, em um lugar pequeno, no máximo oito pessoas por vez. Cada uma delas paga 250 reais pelo privilégio, serviço incluído, bebidas não, e sai dali leve, solta e extasiada. Entre os iniciados e especialistas, porém, ele está perto de se tornar uma unanimidade. Aos 42 anos, Leonardo Jun Sakamoto, paulista de Presidente Prudente, é reverenciado como o sushiman número 1 do Brasil.
Discreto a ponto de não colocar placa na porta de seu restaurante, ele se mostra tão reservado em relação à privacidade que não informa em que bairro mora. Tampouco conta que, casado com a mulher pela qual se apaixonou na adolescência, tem dois filhos. Se indagam em que local costuma correr uma hora pela manhã (terminou quatro vezes a São Silvestre e pretende um dia participar da Maratona de Nova York), limita-se a dizer que é em um parque da cidade, sabe Deus qual. Nesta semana, parte do mistério se desfaz. Na quinta-feira (5), será lançado na Livraria Cultura do Conjunto Nacional um livro de 274 páginas sobre sua vida e sua arte. Publicado pela editora BE˜I, Jun Sakamoto – O Virtuose do Sushi (274 páginas; 175 reais) é uma das mais primorosas obras sobre gastronomia já feitas no país. Em volume separado, sairá ainda O Japão por Jun (120 páginas; 45 reais), um pequeno guia de restaurantes e atrações culinárias de Tóquio e algumas outras cidades japonesas.
O livro traz um fascinante ensaio em preto-e-branco do fotógrafo e arquiteto paulista Cristiano Mascaro (confira galeria de imagens). São 55 imagens, clicadas em São Paulo e no Japão, onde Cristiano, Jun, o editor Tomás Alvim e a professora de gastronomia Mari Hirata passaram 23 dias para realizar o trabalho. Três das fotos ilustram esta reportagem. Cristiano, que usa câmera digital apenas “como caderno de anotação”, fez os registros com uma Leica alemã e filmes Kodak Tri-X revelados e ampliados por sua laboratorista de confiança. Nada de flash, só luz natural. “Tudo discretamente, sem invadir o restaurante e a intimidade dos freqüentadores”, explica.
Já os esplêndidos e apetitosos retratos dos pratos, que ilustram 22 receitas descritas passo a passo (veja exemplos), foram produzidos de forma oposta. O suíço Andreas Heiniger, que se mudou para o Brasil em 1974 e é tido como um mestre da fotografia para publicidade, sobretudo de automóveis, fechou o restaurante durante três dias inteiros, transformou-o em um estúdio e levou para lá uma equipe de cinco assistentes. Parte das fotos – batidas com uma Hasselblad sueca digital – exigiu três fontes diferentes de iluminação. Cada prato foi preparado pelo menos duas vezes. Na primeira, para o demorado acerto de enquadramento, foco e luz. Em seguida, Jun refazia a receita, que era fotografada de imediato, sem nenhum truque – no restaurante, ele serve os sushis um a um, nunca colocando vários deles juntos no prato de cerâmica, e exige que, para a correta degustação, o cliente coma sua iguaria na mesma hora. “Os pratos e as fotos tinham de ficar absolutamente precisos”, diz Heiniger.
E ficaram. “É isso que sempre me fez vir até três vezes por semana ao restaurante do Jun: desfrutar sua busca pela perfeição”, conta a mineira de formação carioca Marisa Moreira Salles, hoje moradora de São Paulo, designer, editora de livros e gourmet. Ainda mais avessa aos holofotes do que o sushiman, ela teve a idéia de fazer o livro de tanto comer lá com o marido, o banqueiro Pedro Moreira Salles. Para escrever o texto principal, Marisa convidou o jornalista Thomaz Souto Corrêa, o TSC, vice-presidente do conselho editorial da Editora Abril, que virou freguês de casas japonesas nos anos 60, quando eram circunscritas ao bairro da Liberdade. TSC realizou doze sessões de entrevista com Jun, no período de um ano, antes de redigir o longo e surpreendente perfil do nissei que foi mau aluno, não sabia o que queria na vida, tornou-se aventureiro e trabalhou como imigrante ilegal em restaurantes de Nova York, onde era tratado aos gritos pelos chefs, entre eles um certo Nakamura-san. Além de destrinchar frangos, era incumbido da faxina do restaurante.
Um dia, Jun percebeu que Nakamura-san estava confiando nele. “Chanto minasai”, disse o chef. Ou seja, preste atenção. Mostrou-lhe então como se limpa e corta um linguado. “Acho que foi quando eu realmente senti que tinha algum potencial com uma faca na mão”, afirma no livro. “Pensei, de brincadeira, que virava bandido ou sushiman…” Jun diz que aprenderia os segredos de seu ofício “pulando de galho em galho”, até que, como cliente do microscópico restaurante Komazushi, que funcionava na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, 2050, passou a observar em ação o soturno, calado e brilhante Takatomo Hachinohe, o mais lendário sushiman da história da gastronomia paulistana. “O sushi de Hachinohe, ídolo da minha vida, mexia na boca”, garante Jun. “Na verdade, todo grande sushi mexe mesmo”, escreve TSC. “É uma seqüência de segredos que o tempo ensina aos mais talentosos e que deixa o arroz se expandir.” Quando Hachinohe morreu, em 1998, Jun foi convidado pela viúva para substituí-lo, já no Shopping Top Center, na Avenida Paulista, onde ficaria durante um ano e meio.
Em setembro de 2000, finalmente, ele abriu o restaurante Jun Sakamoto, na Rua Lisboa, em Pinheiros. Tem 36 lugares – doze no balcão, e, destes, oito atendidos pessoalmente pelo dono, mediante reserva, de segunda a sábado, a partir das 19 horas – e clientela silenciosa, que experimenta sabores raros e texturas excitantes ao som em baixo volume de Miles Davis, Duke Ellington e outras estrelas do jazz. No cardápio, pode-se ler o que está tocando naquela noite. “Se você presta atenção, o jazz é lindo. Se não, ele não incomoda”, acredita Jun, que fica absorto enquanto maneja sua longa faca Aritsugu, fabricada em Kioto pela mesma família desde 1560, há dezoito gerações – e vendida exclusivamente a profissionais, com afiação personalizada que leva em conta a postura corporal do sushiman.
Se um dia você for lá, tome certo cuidado. Não com a faca, é claro. Mas com as reações do homem que a empunha com espantosa destreza, sendo capaz de picar nabo ou fatiar um toro de olhos fechados – o que às vezes acaba de fato acontecendo, em razão de uma enxaqueca crônica que lhe fecha a vista direita por vários minutos –, e que pode sair do sério se, ao sentar-se numa das banquetas, alguém cometer uma das seguintes imprudências:
• Pedir um combinado de sushi e sashimi, um califórnia ou apenas salmão e atum. “Aqui não tem, vá a outro lugar”, vai sugerir, dando o endereço da casa vizinha.
• Querer colocar mais shoyu no sushi. O molho à base de soja é dosado na hora, em gotinhas, por seu assistente, José Francisco de Araújo, o paraibano Zezinho, que, ao lado do sushiman Juraci Pereira, o paulista Jura, trabalha com ele, raramente abrindo a boca, desde o início do funcionamento do restaurante.
• Queixar-se do preço. Justificativa de Jun: “Massa é farinha e água, e tem restaurante italiano que cobra 60 reais por um prato de macarrão. Do filé mignon, aproveita-se tudo, mas de um linguado eu jogo mais da metade fora. Meu arroz californiano custa sete vezes mais do que um similar brasileiro. Meu vinagre japonês, doze vezes mais. E 60% dos peixes da minha degustação são importados”.
• Formular esta pergunta singela: “O peixe hoje está bom?” Ele, que escolhe seus pescados numa peixaria que tem o curioso nome de Casa das Frutas Menta, na Rua da Cantareira – vai lá às 5h30 da manhã de terça-feira e encomenda por telefone nos outros dias –, não esconderá os maus bofes.
• Afirmar que prefere sashimi a sushi. “Sashimi é suco de uva”, compara. “Sushi é vinho.”
Acompanhar a refeição com refrigerante, e não com champanhe, vinho branco, cerveja ou saquê, pode? Sim. “No começo, eu fazia cara feia”, admite. “Hoje, eu deixo. O azar é de quem pede, porque o refrigerante tira a fome. Ora, a fome é o melhor tempero. Se você quiser sushi para viagem, o.k. também, pode levar. Ajuda a pagar minhas contas.” E nosso sisudo, seriíssimo e perfeccionista sushiman número 1 – banzai! – dá a primeira boa risada do dia.