“O primeiro médico que procurei foi um cardiologista, que mais parecia um pai de santo: só olhava para cima, nunca para o meu rosto, como se estivesse recebendo alguma informação do além. Eu estava angustiado, com enjoo, urinando sangue. Fui então a um clínico geral, que me examinou direito, por 50 minutos, e disse: ‘Você só não morreu porque o céu e o inferno estão cheios’. Estava perdendo os rins, por causa da pressão alta que nunca controlei direito, e fui direto para a máquina de hemodiálise. Fiquei engatado nessa fiação três vezes por semana, ao longo de dois anos, nove meses e seis dias. O transplante era a salvação, mas é difícil encontrar doador morto, a fila de espera tem muita gente. A mulher de um tio se ofereceu para me ajudar. Mas ela logo engravidou, tive de aguardar o período de amamentação, aguentando os transtornos da filtragem do sangue. Quando estava pronta, desistiu. Descobri que outra parente era compatível, mas teria de emagrecer 30 quilos para o procedimento. Todo mundo ficou no pé dela, mas só perdeu 11 quilos com a dieta. Fiquei desesperado. De um grupo de seis pessoas que começaram a se tratar comigo, eu era o único que restava vivo. Foi quando minha mulher teve nosso filho e, mexendo nos exames dela, vi que o tipo sanguíneo era O positivo, o mesmo que o meu. Ela sempre pensou que era AB, como os irmãos. Ficamos na expectativa: seria compatível? Como eu estava muito mal, no hospital Beneficência Portuguesa propuseram que, enquanto aguardávamos o resultado, ela fizesse os exames preparatórios. Isso aconteceu no Dia dos Namorados. O único jeito foi ser otimista. Um dia, eu estava na máquina, ligado aos cabos, quando a enfermeira me ligou no celular. ‘Tenho uma notícia ruim e uma boa’, disse. ‘A ruim é que estou com saudade de vocês. A boa é que vou vê-los em breve. Sua esposa é apta à doação.’ Desatei a chorar. Foi um rim cedido com muito amor. Uma das minhas maiores satisfações é tomar água de coco, antes proibida por ser rica em potássio. O que era saudável para todo mundo, para mim virava um veneno.”
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