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“A revisão do Plano Diretor vai aquecer o processo de gentrificação”, diz Joice Berth

Para arquiteta, mudanças expulsarão pessoas mais pobres dos bairros; ela defende a participação popular no debate sobre planejamento territorial

Por Mattheus Goto
7 jul 2023, 06h00
Joice Berth: arquiteta acaba de lançar livro sobre urbanismo.
Joice Berth: arquiteta acaba de lançar livro sobre urbanismo. (Bertolino Caetano/Divulgação)
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A arquiteta Joice Berth, 47, nasceu e cresceu na região do Mandaqui, Zona Norte de São Paulo. Como mulher negra, ela vivencia a cidade dentro de seus recortes sociais. Mas, como urbanista, curadora e escritora, pensa em uma vida nas metrópoles para todos.

Essa é a premissa de seu novo livro, Se A Cidade Fosse Nossa, publicado pela Editora Paz & Terra. Além de abordar os imbróglios sociais da trama urbana, a obra toca em um assunto aquecido no âmbito municipal: o planejamento territorial e a revisão do Plano Diretor Estratégico, aprovada pelos vereadores no último dia 26.

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As mudanças propostas, como a ampliação do raio passível de adensamento construtivo, só começam a valer após a revisão e a aprovação da Lei de Zoneamento, cujo debate está marcado para agosto. Joice argumenta que as medidas atendem “integralmente” às demandas do mercado imobiliário e não dialogam com as necessidades da população.

Para você, a quem a cidade de São Paulo pertence?

Ao poder socioeconômico. Existe uma pirâmide imaginária, mas com consequências visíveis, em que homens brancos de classe alta estão no topo. Eles não experimentam as precariedades e têm privilégios a despeito dos outros. Quanto mais vamos fatiando essa pirâmide, vamos vendo um agravamento maior do cenário, até chegar à base, onde estão negros, LGBTs e indígenas.

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Como esse agravamento pode ser observado na cidade?

Um exemplo é o genocídio da população negra. Há estudos que mostram que há uma morte sistemática de negros entre 14 e 30 anos, que são assassinados pela polícia sem explicação. Isso também está vinculado com o direito à cidade, pois os crimes não acontecem em área nobre, é só na periferia. E tem um lado histórico, de ser planejado para acontecer dessa forma e se perpetuar ao longo do tempo.

Como essa lógica será impactada pela revisão do Plano Diretor?

O que faltou na revisão do Plano Diretor é o aprofundamento e o protagonismo das opressões que estruturaram a sociedade. Houve uma involução da participação popular em comparação com a proposta de 2014, da gestão de Fernando Haddad (PT), em que foram feitas audiências públicas com a população nas subprefeituras. Era o momento agora de aperfeiçoar, a partir dos debates de raça, gênero e classe, para ir avolumando e ganhando consistência. A nova revisão jogou totalmente fora esse debate e redefiniu muitos pontos. Ela incentiva o uso do carro em detrimento do transporte público e privilegia a classe dominante, pois permite construir mais prédios ao redor de metrô e avançar com essas construções nos miolos dos bairros, por exemplo. Então vai aquecer o processo de gentrificação e de expulsão das pessoas mais pobres nos bairros. Foram muitos os retrocessos e eles estão intimamente ligados a essa estrutura racista, machista e aporofóbica (que tem aversão aos pobres).

“A favela é vista como uma patologia urbana. É uma lógica de casa-grande e senzala. O mercado imobiliário não olha para isso”

Joice Berth

Até que ponto a revisão do Plano Diretor atende aos interesses do mercado imobiliário?

Ela atende à medida que privilegia. As decisões dentro da cidade têm que ter mediação. Uma cidade não é única, homogênea, tem diversas necessidades. Nós somos uma sociedade capitalista, onde o mercado imobiliário existe e é um eixo importante da economia. Mas a mediação também precisa existir, e o que aconteceu foi o contrário. As demandas do mercado foram atendidas integralmente. A cidade pode render lucro, mas não pode ser vista só com esse olhar. Senão só vão colocar parque em área nobre, com o pensamento de que ninguém vai para a periferia atrás de lazer. A favela é vista como uma patologia urbana, como um lugar dos excluídos. É uma lógica de casagrande e senzala. O mercado imobiliário não olha para isso.

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Bares e estabelecimentos tradicionais estão fechando no Centro para dar lugar a prédios. Você defende o adensamento nos bairros centrais?

Há dois pontos sobre essa questão. Primeiro, o do patrimônio, da identidade urbana. O brasileiro vai para a Europa e vê lugares com pedaço de história. No Brasil, nós não somos voltados para a manutenção da nossa memória. Não percebemos o quanto isso afeta a identidade. Um bar pode ser pequeno, mas faz parte da história do bairro. Tem diversas histórias de quem morou por ali, então tem que ficar ali. E o outro ponto é a verticalização. Ela não vai atender ali quem mais precisa, que é o povo em situação de rua ou em região de risco de desabamento. Ela tem que ser muito bem pensada, senão vai entrar em lógica excludente. O mercado lança apartamentos studios perto de estação de metrô e terminal de ônibus com o discurso de equacionar o déficit habitacional, mas tudo remete a um único público, que vem do topo da pirâmide, aquele estudante que sai de casa para morar mais perto da universidade. Eles usam esse truque para o pobre acreditar que tem algo feito, mas ele sequer consegue pegar um financiamento para pagar. Não dá mais para cair na falácia do mercado imobiliário, a gente tem que partir para uma ação efetiva para que de fato a gente possa dizer que a cidade é nossa. Essa revisão do Plano Diretor é só mais um capítulo dessa história problemática.

Há algum ponto positivo na revisão, em sua opinião?

O ponto positivo nesse caso é a possibilidade de revisar o que já foi feito, de discutir e reavaliar de tempos em tempos. Nada pode ser para sempre porque a vida é dinâmica. Mas não passa disso, porque esse Plano Diretor vai mais tumultuar e privilegiar os donos de poder do que de fato equacionar os problemas de quem vive a cidade em suas mais variadas deficiências.

O que pode ser feito para diminuir os danos nesse processo?

Com a revisão aprovada, vamos precisar de tempo para observar como as questões vão se ambientar, entender os novos problemas e levantar novas questões. Nós, urbanistas, temos o desafio de desmistificar o urbanismo e a arquitetura, que são vistos como polo de elitização, coisa de rico, intelectual. Sendo que os dois são pilares estruturais das nossas vidas, para além do técnico. Você precisa de uma boa casa para ter qualidade de vida. O imbróglio das questões técnicas afasta as pessoas. Elas precisam entender o que é outorga onerosa, de onde sai o Fundurb (Fundo de Desenvolvimento Urbano) e onde é aplicado, o que é verticalização. Esses termos precisam ser destrinchados. Temos um longo trabalho pela frente, de identificar os danos que vão ser causados para poder pautar a discussão.

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