A guerra da igreja evangélica que ousou tratar LGBTs de forma igualitária
O resultado: ataques virtuais, debandada de fiéis e dívidas bancárias
Era um culto dominical de rotina, no fim de maio, quando o pastor Ricardo Gondim, 68, líder da Igreja Betesda de São Paulo, um templo de 8 000 metros quadrados em forma de galpão no Jardim Marajoara, na Zona Sul, anunciou ao microfone que passaria a tratar de maneira igualitária os fiéis homossexuais.
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“Não vamos mais somente aceitar que frequentem o nosso espaço: daremos voz a eles, permitiremos que tenham cargos religiosos”, ele diz.
Teólogo e conferencista renomado no meio evangélico, Gondim já era conhecido pelas posturas progressistas, mas, como praticamente todos os pastores mais liberais, apenas tolerava a presença de gays na comunidade, sem dar a eles uma participação plena nos cultos. “Nossa igreja saiu do armário”, define.
Ativa desde 1991 em São Paulo, a Betesda — originalmente fundada no Ceará — pertence ao ramo pentecostal. Ou seja, não faz parte nem das evangélicas “históricas” (como a batista, a luterana ou a anglicana) nem das neopentecostais (ligadas a figuras como Silas Malafaia e Edir Macedo). No Brasil, nenhuma das vertentes aceita abertamente os LGBTQIAP+, exceto a anglicana.
A nova postura da Betesda a tornou um caso raríssimo: uma pentecostal “afirmativa” (onde homossexuais não sofrem nenhuma restrição) que não é uma “igreja gay” (a maioria dos fiéis, assim como os pastores, não é gay — como acontece em congregações da cidade voltadas quase exclusivamente a esse público).
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Em outras palavras, é apenas uma igreja pentecostal “comum”, que resolveu dar a todos os mesmos direitos. Vai inclusive celebrar casamentos homoafetivos. “O primeiro deve acontecer em janeiro”, diz Gondim.
Há apenas três templos semelhantes (além do ramo anglicano) entre os mais de 2 000 endereços evangélicos de São Paulo, segundo a Casa Galileia, instituto que monitora o segmento.
O gesto de humanidade do pastor acabou por despertar, em parte dos fiéis, o pecado da ira. Dentro da própria Betesda, onde sempre se respiraram ares mais liberais, pipocaram conversas cheias de estigmas. “Ouvi perguntas do tipo: ‘Meu filho vai aprender a ser homossexual?’, ou ‘Vão acontecer comportamentos inadequados dentro da igreja?’”, diz Gondim.
O pastor, em seguida, assistiu a uma debandada de seguidores. Os cultos de domingo, que costumavam atrair 2 600 pessoas, agora recebem em torno de 800. As cadeiras de uma parte do salão foram retiradas e substituídas por móveis, para disfarçar o vazio.
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Mais agressivas foram as reações de outros grupos evangélicos. “Rolou um ‘cancelamento’ nas redes sociais, os haters (críticos) surgiram em massa”, conta Gondim. “Postavam frases como: ‘Você vai morrer e dançar com o capeta no inferno’”, ele relata. Um dos principais sites “noticiosos” do segmento anunciou: “Ricardo Gondim choca sua igreja”.
A revoada de fiéis abalou as finanças da Betesda. A maior parte dos que abandonaram o templo era de famílias de classe média. Sem esses doadores, restou um público majoritariamente jovem na congregação.
“Tivemos de fazer dívidas em bancos para pagar as contas. Passamos pela pandemia sem precisar de empréstimos, mas não pelo ‘cancelamento’”, diz Gondim. “A nossa igreja depende de um milagre”, ele alardeou ao microfone, no culto de 11 de setembro, ao divulgar a rifa de um Ford Ka branco, ano 2015.
“O movimento evangélico brasileiro foi fundado em cima de uma pauta moral conservadora”, declara Daniel Santos, 48, pastor de outra rara pentecostal afirmativa, a CCZL, na Vila Formosa.
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Ex-frequentador da Betesda, Daniel também perdeu fiéis quando assumiu essa postura, em 2017. “Saíram umas trinta pessoas (hoje as reuniões atraem por volta de oitenta frequentadores)”, ele afirma. “É o preço que se paga por ser coerente. Muitos pastores mantêm uma postura hipócrita — dizem que acolhem os gays, mas é uma inclusão ‘até a página 2’: você é bem-vindo, desde que fique quietinho e não ‘dê pinta’.”
Fora do Brasil, a maioria dos ramos evangélicos históricos se abriu aos LGBTQIAP+ a partir dos anos 1970. “Na ditadura militar, o país abafou esse debate dentro das igrejas. Prevaleceu só a visão dos conservadores”, justifica Flávio Conrado, doutor em antropologia pela UFRJ e ativista da Casa Galileia.
“Nos últimos anos, porém, novas modalidades de família se tornaram visíveis, mesmo dentro do ambiente evangélico brasileiro. Conheço vários pastores ou filhos de pastores que começam a sair do armário”, ele afirma.
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Pai de três filhos e casado com uma psicóloga, Gondim fez os estudos religiosos na Califórnia, nos Estados Unidos. No escritório, tem uma biblioteca com volumes de Rubem Braga, Millôr Fernandes e Chico Buarque — é particularmente devoto de Graciliano Ramos e José Lins do Rêgo.
“Discordo da tese do pecado original. A teologia comum acha que a humanidade toda é corrompida devido ao pecado de Adão. Entendo essa narrativa bíblica como um relato místico, uma poesia, não como fato histórico”, ele explica. “A homossexualidade não é pecado, Deus ama a todos. Tampouco seremos uma igreja só para gays: vamos fazer fóruns sobre negritude, mulheres, violência doméstica”, adianta o pastor.
“Perdemos muitos fiéis, sim. Mas a sensação é a de que estamos fundando uma nova igreja”, conclui.
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Publicado em VEJA São Paulo de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807