Frente criada por moradores de São Paulo alerta para riscos da poluição sonora nas metrópoles
Exposição a ruídos altos pode causar perda auditiva, ansiedade, depressão, problemas cardiovasculares e demência

É uma doença invisível, mas perfeitamente audível. A poluição sonora tem se tornado uma pauta cada vez mais presente na capital paulista — e urgente: segundo a OMS, os ruídos em alto volume estão entre os principais riscos para a saúde física e mental e para o bem-estar. Barulhos de festas, indústrias e eventos de grande porte excedem os limites saudáveis para o ouvido humano e podem provocar desde perda auditiva até problemas cardiovasculares.
Moradores da Avenida Paulista, Butantã, Água Branca e Vale do Anhangabaú se juntaram no dia 25 de junho para lançar a Frente Cidadã pela Despoluição Sonora. “A ideia é que outras regiões da cidade se juntem à iniciativa”, explica o idealizador, Marcelo Sando, filósofo e morador da Paulista. Há cerca de quatro meses, ele começou a se mobilizar com vizinhos que sofrem com o barulho excessivo aos domingos, período em que a principal via da cidade fica exclusiva para pedestres devido ao Programa Ruas Abertas. Os amplificadores das bandas que ocupam o logradouro produzem sons que ficam entre 75 e 80 decibéis (dB) — a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) prevê o máximo de 65 dB para áreas mistas com predominância de atividades culturais, de lazer ou turismo (veja o quadro abaixo).

A iniciativa foi crescendo e chamou a atenção de outras vizinhanças que sofrem com festas e shows altos (caso da Água Branca, com Allianz Parque, e Vale do Anhangabaú), e barulhos de fábrica (reclamação dos residentes no entorno do Instituto Butantan). “A cidade está poluída de algo que é invisível, mas que tem matado a população de uma forma ironicamente silenciosa”, reflete Sando.
E mata mesmo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 12 000 pessoas morrem todos os anos na Europa por causa da poluição sonora. “Hoje, os níveis altos de ruído, que antes eram restritos às fábricas, estão presentes também nas ruas”, explica Robinson Koji, médico otorrino membro da Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico-Facial (ABORL-CCF). Ele alerta que ruídos acima de 75 decibéis em áreas urbanas são suficientes para causar perda auditiva, um dano irreversível. Para problemas como estresse, distúrbio do sono e riscos cardiovasculares, o limite é 65 dB. Em um dia de trânsito comum, o barulho na Avenida Paulista chega a 75 dB, de acordo com o Mapa de Ruído, elaborado pela Associação Brasileira para a Qualidade Acústica (ProAcústica).

A saúde mental também é afetada. O excesso de ruído interrompe os ciclos naturais de atividade e descanso cerebral, como explica Kleber Duarte, neurocirurgião do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. “O barulho contínuo faz com que a pessoa gaste muito mais energia para se concentrar e inibir os estímulos externos, o que gera estresse e deixa o cérebro cansado”, aponta. Algumas consequências disso são os sintomas de ansiedade, depressão e até maior probabilidade de desenvolvimento de demência. Para pessoas neurodivergentes, a situação é mais crítica: “São os que têm maior dificuldade de manter o foco, e o esforço para se concentrar em meio ao ruído é ainda maior”.
É o caso de Hugo Nogueira Neto. O cirurgião-dentista de 57 anos tem sofrido com a barulheira na Paulista, onde mora desde 2009, devido ao transtorno de processamento sensorial, condição associada ao autismo. Ele explica que os sons das baterias que se apresentam aos domingos e o chiado dos amplificadores são os mais agressivos — e desencadeiam crises de autoagressão. “Fico desconcentrado e, involuntariamente, começo a me coçar para recuperar o foco, produzindo feridas. Também golpeio meu tórax, abdome e pernas com murros, para tentar me concentrar”, relata. Mudar de endereço não é uma opção. Ele passou dez anos reformando o apartamento onde vive para reduzir estímulos sensoriais e possíveis acidentes durante as crises. “Seria impossível repetir esse esforço e construir um ambiente saudável em outro lugar a partir do zero”, resume.
Para escapar dos riscos, paulistanos apostam em estratégias cada vez mais radicais. As janelas acústicas ajudam, mas são incapazes de conter plenamente o som que vem de fora. A psicóloga Marli Maleti, 73, passou a dormir na sala depois que o barulho dos concertos no Allianz Parque começou a inviabilizar seu sono. Moradores da Paulista fogem para a casa de amigos e familiares aos domingos — Neto, por exemplo, precisou aumentar a medicação nesses dias. Para abafar os ruídos de gerador vindos do Instituto Butantan, Patricia Coelho tentou usar protetores auriculares, abafadores industriais, fones com cancelamento de ruído e ventiladores ligados para mascarar o som. Tudo em vão.

Existe uma série de leis que tentam proteger os ouvidos da população de São Paulo, mas elas ainda apresentam falhas, segundo Mariana Chiesa, presidente da Comissão de Direito Urbanístico da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). “A legislação é nebulosa em alguns aspectos”, afirma, citando o caso das caixas de som na rua. “Existe pouco espaço para mediação desses conflitos. Ou eles viram casos de polícia ou ficam dependendo de uma fiscalização que nem sempre dá conta”, completa.
Questionada sobre a poluição sonora na Avenida Paulista e no Vale do Anhangabaú, a prefeitura informou que intensificou as ações contra a perturbação do sossego em toda a cidade, com fiscalizações-surpresa principalmente nos fins de semana. Também ressaltou que houve um aumento de autuações por meio do Programa de Silêncio Urbano (PSIU) — foram 708 entre janeiro e junho deste ano, ante 659 no mesmo período do ano passado. O PSIU fiscaliza somente estabelecimentos comerciais, indústrias, hospitais, templos religiosos, obras particulares e som proveniente de veículos automotores estacionados. Não se aplica, portanto, a shows de bandas, eventos nem ao Programa Ruas Abertas. Com isso, não estão sob sua fiscalização as maiores fontes de distúrbio relatadas nesta reportagem.


O debate em torno do ruído urbano tem ganhado contornos polarizantes. Quem reclama da fábrica do Butantã é tido como antivacina. Quem sofre com crise de ansiedade aos domingos na Paulista vira “contra a cultura e a arte de rua”. No Vale do Anhangabaú, os queixosos são tachados de “avessos à diversão”. “Não é uma pauta política, mas uma reivindicação por saúde e bem-estar”, resume Hugo Nogueira Neto.
Publicado em VEJA São Paulo de 11 de julho de 2025, edição nº2952.