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Falemos de peixes

Vi um peixe pulando na estrada como quem vai a algum lugar. Tudo o que ele queria era voltar para casa – o mar. Peixes não têm pensamentos lógicos, seqüenciais, a não ser em desenhos animados, e isto não é um desenho animado. Ele apenas queria. Queria o mar e pulava. Talvez sentisse a maresia […]

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18
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  • Vi um peixe pulando na estrada como quem vai a algum lugar. Tudo o que ele queria era voltar para casa – o mar. Peixes não têm pensamentos lógicos, seqüenciais, a não ser em desenhos animados, e isto não é um desenho animado. Ele apenas queria. Queria o mar e pulava. Talvez sentisse a maresia no vento que vinha da baía. O asfalto aquecido pelo sol e a poeira determinavam o ritmo do seu debater-se. Pertencia a outro mundo o saber como fora parar ali, na pista da via elevada, ou o que seria uma via elevada. Também o que seriam aqueles volumes que passavam por ele como barcos secos. Os motoristas se desviavam atônitos. Já pensou que história, atropelar um peixe? Es-távamos na Perimetral do Rio, indo para Niterói. Lá de cima, no acostamento, alguns homens jogavam anzol na Baía de Guanabara. O peixe deve ter escapado pulando do balde de algum deles. Dei seta para a esquerda, diminuí a marcha, parei o carro, e os pescadores ficaram me encarando como se eu fosse fiscal. Ainda não tinham visto o peixe. Já enfraquecido pelo esforço, ele se debatia sobre os vãos de escoamento de águas pluviais do elevado e caiu lá para baixo, no mar.

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    Falemos de peixes, leitor, neste fim de Quaresma. Lembranças, cenas. Nada que forme uma história ou um raciocínio.

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    Lembro-me do amigo Davi, de linhada na mão, sobre a ponte quebrada na foz do Rio São João, onde em outro século pescava o jovem poeta Casimiro de Abreu. Durante uma enchente, havia muitos anos, a enorme ponte que ligava o sul ao norte do Rio de Janeiro se quebrara em três pedaços. De um deles, Davi jogava o anzol e víamos o cemiteriozinho no outeiro à beira-mar, onde está a sepultura do poeta, e víamos pescadores indo e vindo em suas traineiras e batelões. São descendentes de índios, o que restou dos goitacás, que vieram descendo de Campos e pararam ali, na boca do São João. Os pescadores do São João não comem bagres. O velho pescador que atravessava nosso quintal para chegar ao rio nos dava os que caíam em sua rede. Já não agüentávamos comer bagre e não tínhamos como recusar a gentileza. Davi, com esperança de pegar um robalo, arrancou das águas um peixe que brigou muito: era apenas um baiacu, e roncava!

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    Uma das minhas incapacidades é não saber tirar o peixe do anzol; não saber não é bem o termo, falta é coragem de pegar no bicho sapateando, ferrões armados. Menino, pescava carás e bagrinhos com meus primos, no córrego no fundo da casa de meu avô, e eles é que tiravam o peixinho do anzol. Não há mais córrego, nem avô, nem carás – Belo Horizonte comeu. Em um penhasco na Bertioga fiquei esperando o peixe morrer, na pedra, preso ao anzol. No barquinho a motor que nos levava para visitar o preso político na Ilha Grande, o barqueiro me ofereceu o anzol de chapinha para corricar. Uma grande cavala foi fisgada, o barqueiro gritava: “Puxa, puxa para dentro!” – e ele acabou tendo de fazer isso, e matou o peixe dentro do barco com uma paulada na cabeça. Nunca mais pesquei.

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    Chegamos no começo da tarde a Pirapora, cidade na beira do Rio São Francisco, depois de 300 quilômetros de poeira. O restaurante anunciava: peixe fresco. Sentamos, encorajados por uma cerveja. “Que peixe tem?” “Não tem.” Decepção. “Mas se pode pescar.” Fazer o quê? A cerveja, o papo, histórias barranqueiras, olhares morenos, a falta do que fazer ajudaram a espera de horas. Já anoitecendo chegou o peixe à mesa, de uns 60 centímetros, pele crestada no forno, recheado de farofa, em fofa cama de salsinha e coentro. Eh, Minas!

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    Roma. Diante do garçom, a mulher olhava o cardápio com visível dificuldade. Balançava a cabeça diante do mistério das palavras. Falou ao garçom em português do Brasil: “Peixe”. A palavra soa igual em português e italiano. O garçom encolheu os ombros, como quem diz: mas qual peixe? “Quale?” A mulher, travada. O garçom procurou ajudar, indicou um prato, “è buono, buonissimo”. A mulher, sorrindo agradecida, aceitou a sugestão. Quando o garçom colocou na sua frente o pedido, ela parou, imobilizada, incapaz de um gesto, uma palavra. Diante dela, empinada, uma enorme cabeça de peixe ocupava todo o prato, olhos esbugalhados, boca mostrando os dentes, e ela a contemplava petrificada, como se a cabeça fosse saltar dali e abocanhar seu rosto.

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