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Na contramão do fast fashion, estilistas investem no design autoral

Conheça cinco ateliês em atividade na capital paulista que apostam em roupas com identidade e referências culturais

Por Vanessa Barone
24 Maio 2024, 06h00

Em uma época dominada pelo consumo acelerado, pode parecer anacrônico pensar em estilistas que investem em coleções feitas artesanalmente, com apuro técnico, desenho autoral e tecidos nobres. Felizmente, eles existem e usam toda sua criatividade a serviço de uma corrente que vai na contramão do fast fashion (trocadilho que adapta o conceito de fast-food para o universo da moda) — e por isso mesmo foi batizada de slow fashion (moda lenta, em tradução livre).

Helena Pontes, Iara Wisnik, Alix Duvernoy, Lu Lima e Marco Normando são alguns desses heróis da resistência que idealizam e constroem roupas feitas para sobreviver ao tempo e resistir aos modismos de ocasião. “Sou neta de costureira, aprecio o fazer manual e tenho uma relação afetiva com as roupas”, diz Helena Pontes, que concentra loja e ateliê em um charmoso sobrado no bairro de Pinheiros.

E ela não está só. Para Marco Normando, que deixou Belém para se instalar em São Paulo, há dez anos, praticar o slow fashion é uma forma de manter os pilares sustentáveis de sua marca. “Não me interessam as tendências, mas, sim, a atemporalidade.” O trabalho de Iara Wisnik, Alix Duvernoy e Lu Lima vão pelo mesmo caminho, apostando em coleções que trazem referências culturais e propõem uma forma mais consciente de consumo.

O cientista social Dario Caldas, fundador do Observatório de Sinais, explica que o fenômeno slow fashion surge como uma resistência à crescente aceleração do consumo em nosso tempo. “Ele ainda representa um nicho”, diz. Mas com a possibilidade de ganhar mais e mais adeptos.

Segundo a pesquisadora de moda Paula Acioli, não é de hoje que o fenômeno do fast fashion levanta questionamentos éticos e estéticos. Mesmo que ele tenha, aparentemente, democratizado o acesso às tendências que antes ficavam restritas às marcas de luxo, também trouxe prejuízos ao meio ambiente, além de precarizar a mão de obra envolvida na produção. “O fast fashion provocou aumento de consumo, mas também de descarte”, diz. E mesmo que isso pareça lógico, está longe de ser aceitável. Sobretudo em tempo de calamidades climáticas e tragédias ambientais.

A inspiração na cultura regional com pegada atual e urbana de Helena Pontes

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Helena Pontes em seu ateliê em Pinheiros (Camilla Maia/Veja SP)

Quando era adolescente, no Recife, Helena Pontes, 43, adorava acompanhar a avó costureira, Maria Anunciada, às lojas de artigos têxteis. Juntas, elas escolhiam os tecidos que, mais tarde, dariam forma às roupas que Helena usaria por muitos anos — e influenciariam sua entrada no mundo da moda. “Com ela aprendi a valorizar os processos manuais”, diz a estilista. “Porque, mesmo sendo autodidata e desenhando os moldes no papel de embrulhar pão, minha avó fazia peças lindas e contemporâneas.”

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Croquis em produção no ateliê de Helena (Camilla Maia/Veja SP)

Apesar da influência da avó, Helena primeiro se formaria em design gráfico, pela Universidade Federal de Pernambuco. Somente anos depois, deixaria a publicidade para se especializar em moda pela Esmod, na França.

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Linhas do ateliê: Helena aprendeu com a avô a valorizar os processos manuais (Camilla Maia/Veja SP)

Dona Maria Anunciada costurou até os 98 anos e morreu em 2016, aos 99. Felizmente, teve tempo de ver a neta abraçar o mundo do corte e da costura. Isso se deu quando a estilista já morava no Rio de Janeiro e abriu seu primeiro ateliê, na Gávea. No início de 2020, Helena transferiu sua marca para São Paulo, um mercado mais promissor para suas criações. “Mas veio a pandemia e tudo mudou”, lembra ela, que com o fechamento da loja passou a vender on-line, até conseguir se reestruturar e, em 2023, abrir um novo ponto de venda, em Pinheiros.

Em um charmoso sobrado, Helena reuniu a produção de suas peças-piloto e a loja aberta ao público. “Isso me permitiu estar perto das clientes e ouvir suas sugestões”, explica. A estilista desenvolve duas coleções por ano, sem seguir modismos, mas apoiada em três pilares: modelagem, matéria-prima e acabamento. O resultado são roupas estruturadas que traduzem a força do feminino.

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Modelo em produção no ateliê de Pinheiros (Camilla Maia/Veja SP)

Entre suas clientes estão mulheres de presença marcante, como a jornalista Ana Paula Padrão, a chef Helena Rizzo e a artista Joana Lira. “Eu me inspiro nas mulheres da minha história e no repertório afetivo da cultura pernambucana”, diz Helena, oriunda de uma família de mulheres fortes do interior de Pernambuco — aspecto evidente na modelagem, nas cores e nas estampas de suas coleções. Suas peças, mesmo que sutilmente, carregam os signos da cultura regional, sem deixar de ser atual e urbana.

Coleções da Alix aliam estamparia maximalista a bordados manuais

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A estilista Alix Duvernoy no ateliê (Camilla Maia/Veja SP)

Pessoas com senso de humor e sem medo de ousar. É para elas que a estilista Alix Duvernoy, 38, natural do Rio de Janeiro, desenha peças encantadoras e nada convencionais. Nesse grupo, estão a artista Adriana Varejão, a atriz Bruna Linzmeyer, o artista visual Cabelo, a cantora Bebel Gilberto e a ministra dos povos indígenas, Sonia Guajajara. E o que seduz perfis tão diversos? A estamparia maximalista e os bordados manuais, entre outras coisas.

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“Gosto de roupas feitas por pessoas, não por máquinas”, diz Alix. E isso vale para os bordados feitos a mão e para as estampas criadas em aquarela pela designer e artista visual Lucia Koranyi. Cada peça decorada com miçangas, por exemplo, traz bordado na etiqueta o tempo gasto em sua confecção — que pode chegar a cinquenta horas de trabalho. “É uma forma de valorizar ofícios, como o de bordadeira, que estão acabando.”

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Ateliê da marca fica no centro de São Paulo (Camilla Maia/Veja SP)

Formada em moda pelo Instituto Marangoni, em Paris, Alix passou pelo showroom da francesa Valery Demure, onde trabalhou com acessórios, até abrir sua marca no Rio de Janeiro, em 2018. Há dois anos, transferiu seu acervo para um charmoso prédio antigo, no Centro de são paulo. No espaço, onde faz encontros e lançamentos, é possível ter uma boa ideia de seu trabalho como estilista, mas também como designer de acessórios em criações que vão desde bijuterias maximalistas a bolsas adornadas com bordados delicados.

Nas araras, vestidos longos, de tiragem limitada, dividem espaço com camisões e conjuntos, de tecidos requintados como seda, linho e algodão. As cores saltam aos olhos, em modelos que remetem ao verão, mas resistem em cair na sensualidade explícita.

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Na etiqueta das peças Alix evidencia o trabalho artesanal e o tempo que demandou (Camilla Maia/Veja SP)

Cheia de personalidade, Alix lança duas coleções por ano seguindo a própria inspiração e o repertório diverso acumulado ao longo da vida. “Meu trabalho é feito para durar e vai na contramão da moda”, afirma a filha da joalheira Vera Duvivier e neta de uma das mulheres mais marcantes da high society carioca dos anos 50 e 60, Ruth de Almeida Prado — de quem, dizem, herdou a elegância e o gosto pelo extravagante.

Iara Wisnik traz o rigor da alfaiataria tradicional suavizado pelo design oriental

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A estilista Iara Wisnik (Camilla Maia/Veja SP)

Assim como suas roupas, a estilista Iara Wisnik, 41, tem uma elegância discreta e minimalista. A timidez da criadora, no entanto, não diminui a força das criações, admirada por mulheres estilosas, como a atriz Camila Pitanga, a cantora Manessa Moreno e a comunicadora e curadora musical Roberta Martinelli.

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Formada pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, Iara não seguiu a profissão do pai, o músico e compositor José Miguel Wisnik, preferindo se dedicar a vestir mulheres cheias de personalidade, apreciadoras de modelagens livres de excessos e, muitas vezes, com aspecto utilitário e andrógeno.

Há dez anos, eIa lançou a marca que leva seu nome. Em 2019, abriu um ponto de venda onde mistura loja e ateliê na Vila Madalena — lugar que é um respiro de paz na poluição visual e sonora do bairro. Lá dentro, peças construídas com apuro e materiais nobres, como linho e seda, se distanciam dos modismos de ocasião para exaltar um estilo autoral e perene.

São roupas feitas para durar muito mais de uma estação, com um visual que mescla o rigor da alfaiataria com o estilo zen da moda oriental. Quase sempre lisas, as criações — também vendidas por meio de um e-commerce — têm recortes e texturas, como o jacquard, no lugar de estampas. Tudo calculado para exaltar a sofisticação do corte e o estilo que transita entre o formal e o descontraído, o rígido e o fluido. A versatilidade está presente em peças que podem ser usadas tanto de frente quanto de costas, dependendo do gosto e necessidade da cliente.

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Criações no refúgio da Vila Madalena: estilo autoral e perene (Camilla Maia/Veja SP)

“Qualidade e atemporalidade estão no DNA da marca”, diz Iara, fã de grifes como Stella Mccartney, Celine e a extinta Huis Clos, da estilista Clô Orozco (1950-2013). “Temos modelos de calça e blazer, por exemplo, que se repetem em todas as coleções”, conta. A estilista sabe o poder de uma boa modelagem e faz um favor às clientes mantendo em linha as peças que mais agradam. Entre elas, estão profissionais liberais, chefs de cozinha e artistas. “Acredito que meu estilo seja básico e original, feminino e masculino, sensual e sério, ao mesmo tempo.”

No trabalho do paraense Marco Normando, o asfalto se encontra com as formas da floresta

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Marco Normando no ateliê (Camilla Maia/Veja SP)

Uma marca de alfaiataria com inspiração regional e preocupação com a sustentabilidade. Assim pode ser definida a Normando, criada pelo estilista paraense Marco Normando, 32, que há dez anos decidiu se mudar de Belém para São Paulo. Na ocasião, ainda recém-formado, Marco deixou sua cidade natal para aceitar um convite de trabalho de Alexandre Herchcovitch, um dos estilistas de maior destaque do país.

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De lá, ainda passou pela Hering até abrir uma pequena loja-ateliê com sua marca em 2020. Graduado em moda pela Universidade da Amazônia, Marco encontrou seu nicho ao traduzir as referências culturais amazônicas em vestimenta urbana, presentes também na escolha de matérias-primas vindas da floresta — como o látex e a jarina (semente de uma palmeira amazônica).

Com o látex, Marco cria peças de alfaiataria que já se tornaram best-sellers e são feitas sob medida. O material, que ganha aparência de couro, vem de uma cooperativa localizada no sul de Rondônia. A jarina dá forma a botões, substituindo os feitos de plástico, solução que ajuda a diminuir o impacto ambiental. Encontrar soluções sustentáveis, aliás, é uma premissa básica para ele. “Além disso, me preocupo em fomentar a economia local da Amazônia”, diz o estilista.

Com suas criações, ele encanta mulheres como a apresentadora Sabrina Sato e as artistas Karola Braga e Paula Scavazzini. “O que importa pra mim são a atemporalidade e a durabilidade da roupa”, completa o estilista, que tem 70% da coleção produzida com material sustentável, como a viscose certificada e o algodão orgânico.

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Loja-ateliê em Pinheiros: peças de alfaiataria com matérias-primas sustentáveis (Camilla Maia/Veja SP)

E por falar em coleção, a atual pode ser vista na loja da Normando, no bairro de Pinheiros. Um ambiente quase todo branco — com exceção do banco verde, desenhado pela cliente Paula Scavazzini — exibe suas peças de alfaiataria com acabamento primoroso. Ali, elementos da natureza como a vitória-régia e o muiraquitã — talismã em forma de sapo, original dos indígenas tapajós e konduri — são estilizados para se tornarem trajes urbanos. É onde o asfalto se encontra com a floresta.

Gosto pelo clássico revisitado em propostas contemporâneas nas criações de Lu Lima

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A criadora fluminense Lu Lima (Camilla Maia/Veja SP)

Em 2023, quando deixou a marca Carol Bassi para se dedicar ao trabalho autoral, a estilista Lu Lima, 39, sabia bem o que queria fazer: uma linha de alfaiataria com bossa, baseada em tecidos nobres, bom corte e estilo minimalista. E assim essa fluminense de Miracema, formada em moda pela Universidade Cândido Mendes, lançou sua marca própria em São Paulo, cidade onde vive desde 2010.

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“Nunca fui de praia, meu estilo urbano sempre teve mais a ver com São Paulo”, diz a moça, que anteriormente trabalhou por oito anos na marca Cris Barros, e outros três ao lado da estilista Carol Bassi. Com essa última, Lu pôde realmente vivenciar os processos de uma empresa de moda, uma vez que esteve envolvida com todas as linhas da marca. A experiência foi um trampolim para a carreira solo — hoje muito bem representada por roupas que, apesar de muito femininas, carregam o rigor da modelagem clássica da alfaiataria.

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Livros que inspiram a estilista Lu Lima (Camilla Maia/Veja SP)

“Criei peças que gostaria de vestir, mas não encontrava em outras marcas”, afirma Lu, que gosta de experimentar com materiais alternativos, como o jeans e o tecido sintético que remete ao couro natural. Tudo para agradar à clientela, composta de mulheres acima dos 30 anos com apreço pelo estilo clássico revisitado em propostas contemporâneas.

“Gosto dos cortes retos, de estampas discretas e do design atemporal”, afirma a estilista. Como boa representante do slow fashion, ela está mais preocupada com a construção de um estilo do que se apegar às tendências de moda. “Elas estão presentes nas coleções, mas em pequenas doses.”

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Materiais de trabalho da criadora (Camilla Maia/Veja SP)

Com peças à venda nas multimarcas Pinga Store, nos Jardins, e araras, no Shopping Iguatemi, Lu mantém ainda um ateliê anexo a sua residência, no Jardim Guedala. Lá, clientes e fornecedores são recebidos por Pirata, uma cadela da raça chihuahua que conquista pela meiguice muito antes de sua dona conseguir mostrar suas belas criações. Essas, aliás, agradam aos clientes elegantes — como as atrizes Debora Bloch e Débora Nascimento —, todas elas com um traço em comum: o apreço pela originalidade.

Publicado em VEJA São Paulo de 24 de maio de 2024, edição nº 2894

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