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Elza Berquó, 92: uma das mais importantes demógrafas do país

Há seis décadas ela se dedica a transformar dados estatísticos em inéditos estudos sobre o comportamento da população

Por Mônica Santos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 9 mar 2018, 06h00 - Publicado em 9 mar 2018, 06h00

“Eu sou uma visionária.” É assim, racional e sem falsa modéstia, que Elza Salvatori Berquó costuma se apresentar a novos interlocutores. De fato, quinze minutos de conversa bastam para comprovar que a definição cai muito bem a esta matemática de 92 anos, com mais de sessenta deles dedicados a transformar dados estatísticos em inéditos estudos sobre o comportamento da população.

Nos anos 60, por exemplo, ela foi pioneira ao constatar uma queda na fecundidade das paulistanas. Duas décadas depois, direcionou os holofotes para o que chamou de “a pirâmide da solidão”: à medida que homens mais velhos optam por parceiras mais jovens, diminui progressivamente a possibilidade de mulheres mais velhas encontrarem parceiros de sua geração.

A essas pesquisas, ainda hoje atuais, que pautam de conversas de bar a sessões de terapia, Elza foi somando outras tantas. Trabalhos capitaneados por ela e publicados na forma de livros e mais de uma centena de artigos científicos têm direcionado muitas decisões dos gestores de saúde pública nas últimas décadas.

A casa projetada pelo amigo Artigas: Elza vive nela desde 1967 (Nelson Kon/Veja SP)

De 2017 para cá, a demógrafa está mergulhada num estudo sobre o aumento da taxa de suicídio entre jovens, mas sua mente continua aberta para questões igualmente contemporâneas, como as discussões sobre gênero e feminismo. “As pessoas finalmente se deram conta de que podem ser o que desejarem. Gays, bissexuais, trans… E as mulheres têm a convicção de que não são apenas donas de seu corpo, mas da sua vida. Isso é maravilhoso”, diz.

Mineira de Guaxupé por acaso (o pai, funcionário dos Correios, trabalhou por lá durante um tempo), Elza cresceu em Campinas. Em 1947, numa época em que as cadeiras dos cursos de exatas eram majoritariamente ocupadas por homens, ela se graduou em matemática pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Campinas). Três anos depois, conquistou uma vaga no Departamento de Estatística da Faculdade de Saúde Pública da USP.

Foi lá que sua carreira deslanchou. Na década de 60, após três especializações, mestrado e doutorado concluído na Universidade Columbia, nos Estados Unidos, já integrava o primeiro time de demógrafos no Brasil e participava de conferências mundo afora. Em 1966, dentro da faculdade, juntou pesquisadores de outras áreas e criou o primeiro núcleo oficial de formação em demografia do país, o chamado Centro de Estudos de Dinâmica Populacional (Cedip).

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Como bacharel de matemática, em 1947: mente aberta para interpretar as estatísticas (Arquivo Pessoal/Veja SP)

Todas as suas pesquisas, contudo, foram paralisadas em decorrência da aposentadoria compulsória determinada pelo Ato Institucional nº 5 (AI-5), emitido pelo governo militar brasileiro em 1968.

Nessa época, Elza era casada com um professor ligado ao Partido Comunista Brasileiro, do qual também fazia parte o paranaense João Batista Vilanova Artigas (1915-1985), que se consolidaria como um dos principais nomes da arquitetura paulista. Autor do prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e do Estádio do Morumbi, Artigas levou quatro anos para entregar, em 1967, as chaves da hoje chamada Casa Elza Berquó, localizada na Chácara Flora.

A residência serviu, no ano seguinte, de abrigo para jovens que lutavam contra o regime. “Eu nunca fui de partido algum, mas a localização isolada da nossa casa naquele momento foi providencial. Os jovens que abrigamos não sabiam nosso nome nem o do Artigas. Chegavam, ficavam uns dias e iam embora”, diz Elza.

A suspensão dos trabalhos imposta pelo AI-5 durou pouco tempo e abriu novos caminhos na carreira da pesquisadora. Em 1969, ela e outros professores de diferentes áreas afastados das universidades pela ditadura militar, entre eles o amigo e ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, fundaram o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), no qual a demógrafa segue ativa até hoje.

Ao lado do amigo FHC, em 1995 (Arquivo Pessoal/Veja SP)

Elza também esteve à frente da fundação da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep) e criou na Unicamp o Núcleo de Estudos da População (Nepo), desde 2014 batizado com seu nome. Curiosamente, a dedicação ao trabalho acabou por transformá-la em exemplo de um de seus temas mais pesquisados, o adiamento ou encerramento da reprodução por parte da mulher.

“Eu estava tão envolvida, viajando para lá e para cá, que não me dei conta. Meu primeiro casamento acabou após vinte anos, por uma traição. Sofri por quatro anos, até conhecer meu grande amor e companheiro de vida por 36 anos”, diz, referindo-se ao administrador público José Ademar Dias, que morreu em 2007. “Mas, aí, meu ciclo reprodutivo já estava se encerrando.”

O vaivém entre uma convenção aqui e outra homenagem ali diminuiu um pouco dois anos atrás, após uma queda no banheiro exatamente no dia em que Elza completou 90 anos. Mas as pesquisas continuam a pleno vapor no Cebrap. Atualmente ela faz parte de um grupo multidisciplinar que investiga as razões de suicídio entre adolescentes e jovens e tem como objetivo criar uma série em vídeo. O tema avança via e-mail, WhatsApp e encontros regulares.

“Quando ela não pode vir, vamos até sua casa”, conta a antropóloga Sandra Garcia, também do Cebrap e amiga há mais de duas décadas. “Ela é uma inspiração para diferentes gerações de pesquisadores. Muito generosa, sempre nos estimula com novas ideias”, diz. Na agenda da pesquisadora, que é agnóstica, cabem ainda aulas de musculação, que faz duas vezes por semana em uma academia, encontros com os amigos, idas ao cinema (o último filme que viu foi o grande vencedor do Oscar 2018, A Forma da Água) e muitas séries da Netflix. “Não vivo de passado e acho que velhos caminhos não funcionam. É preciso manter a mente livre e aberta para ter novas inspirações.”

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