É cada vez mais comum ser abordado nas ruas por jovens sorridentes e uniformizados com coletes coloridos, trazendo nas costas a grife de alguma entidade internacional. a missão de moças e rapazes é espalhar benemerências. Todos, invariavelmente, estão de olho na nossa carteira, de onde esperam extrair algum caraminguá para suas causas humanitárias.
Sonhar não paga imposto. ainda. Fico imaginando o dia em que serei parado na calçada do Conjunto nacional por um mocinho de barba rala e olhar brilhante de arcanjo. “Bom dia! Eu sou da Empresa Tal, você conhece?” Claro que conheço, aquele nome vem estampado em 90% dos produtos que vejo no supermercado — de sabão em pó a limpa-vidros, passando por hidratante, xampu, preservativos e fralda geriátrica.
O jovem toma fôlego. “Então” — já repararam como as pessoas começam qualquer frase com essa palavra? “Então, a Empresa Tal finalizou seu orçamento anual e descobriu que teve um lucro astronômico.” Bom para ela, penso eu. “Então. nossos diretores resolveram dividir o lucro com seus consumidores fiéis, como prova de compromisso e respeito.”
Não seria o máximo? Em vez de racharmos a conta do prejuízo, seríamos convidados a ratear os dividendos. É bem verdade que não daria muito para todos, mas a sensação de ganhar alguma coisa já valeria a pena. antes que alguém saia correndo da sala, não se trata de catecismo comunista. no mundo capitalista, as grandes empresas criam programas de participação nos resultados para estimular funcionários e colaboradores. Funciona.
A caça ao doador torna caminhar em nossas ruas verdadeiros safáris que não têm fim. a impressão é que existe uma OnG, uma entidade beneficente para cada infeliz necessitado do mundo. É bom que seja assim, claro. Uma mão lava a outra, ajudar alguém carente faz um bem danado a nós mesmos e, por menor que seja o auxílio, é sempre um refresco na vida dos que nada possuem. Mas, se fôssemos ajudar todo mundo que nos aborda na calçada, o último lugar na fila seria nosso. “ajude um benemérito descontrolado…”
Há situações, no mínimo, provocantes. Um grupo de pedintes de coletinho estende a mão para que nos juntemos à campanha mundial de auxílio às crianças carentes da ilha de Sumatra. na mesma calçada suja — as calçadas paulistanas andam muito sujas, são de dar pena — perambula um bando de meninos e meninas com os pés pretos de poeira, roupas rasgadas e cara de fome crônica. a certa distância, um adulto vigia a performance de seu time. Quem poderia cuidar a sério disso não se coça. Criança nacional não inspira.
Com inflação, desemprego e insegurança dando as cartas, a perspectiva desanima. Tem tanta gente morando nas ruas, em barracas de camping ou cafofos de papelão, que não seria de espantar a criação de um pedágio urbano independente do governo.
Pagaríamos para atravessar os territórios antes livres das calçadas. nem precisaria ser em dinheiro vivo. Os mendigos aceitariam cartão — vendedores de artesanato de Durepoxi e militantes do Hare Krishna já usam as maquininhas. O pedágio nem seria uma novidade. Em muitos cantos dominados pelas milícias ele já existe.