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Masculino, feminino

Confira a crônica da semana

Por Ivan Angelo
Atualizado em 14 fev 2020, 16h01 - Publicado em 15 jun 2018, 06h00
 (Negreiros/Veja SP)
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Não tenho a intenção de fazer ironias com as lutas feministas, longe de mim. Sou por elas. Menino ainda, foi com orgulho familiar e cívico que soube que a minha avó, professora primária nos primeiros anos de 1900, época em que as mulheres mineiras só eram “do lar”, havia participado de campanhas pelo voto feminino nas eleições. Oficialmente, só em 1932, trinta anos depois, a mulher pôde votar e ser votada.

Em março passado, minha filha Mariana me intrigou ao contar que havia grupos feministas contra o Dia internacional da Mulher. alegavam: “É machista!”. Uma chegava a dizer: “O dia da mulher é um; deles, homens, são os outros 364 dias do ano”. Segundo elas, esse não seria um dia de luta, mas de aceitação. Todo dia deveria ser dia de índio.

instigado por Mariana, passei a imaginar que tipo de reivindicação restaria a fazer, no vasto campo do radicalismo, denunciando algum outro flagrante preconceito de gênero, e me ocorreu: a linguagem! a língua portuguesa. Ela e os dicionários, seu legitimador-mor. Palavras que no masculino têm um sentido positivo ganham um significado depreciativo ou mesmo sujo na sua extensão feminina.

Poço é uma dessas: função nobre no masculino, reservatório de água para consumo humano ou animal, salvação na aridez dos desertos e nas regiões semiáridas, enquanto poça é aquela insignificância de água suja empapando sapatos.

Fosso é outra palavra de dupla face: no masculino, brava função militar a separar o invasor e o castelo, os bárbaros e as princesas; ao passo que fossa é a escura câmara de despejo dos dejetos das casas ou, em melhor acepção, a depressão na alma dos seres mal-amados. Quando se diz que uma pessoa está “na fossa”, ela está lá embaixo, na…

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Em área próxima estão as palavras privado e privada. no masculino, o termo é cheio de dignidade, designa o que é restrito, particular, confidencial; no feminino, é… o que se sabe. É possível colocar na mesma categoria o compadre, que é o camaradinha chegado, o contraparente, o amigão, e a comadre, que é, para lá desses conceitos, um urinol de cama de hospital.

Tomemos mundano. É o cidadão do mundo, o viajado, o que sabe das coisas, desfruta o que há de bom, aproveita a boa vida; já mundana é a mulher da vida, a piranha, a biscateira. É o mesmo caso de homem público, que é o dignitário, o tribuno, o nobre deputado, enquanto a mulher pública é, de novo, a biscateira. O homem falado é o cara famoso; a mulher falada é a — quem? — biscateira.

O nobre galo, cantor da madrugada, anunciador de auroras; do outro lado a galinha, periguete, outra biscateira. ainda na área ornitológica, vejam o rameiro, pássaro inquieto que faz a graça de pular de galho em galho; o que acham que é a rameira?

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Passarinho, no sentido geral, é a avezinha que seduz pelo canto e pela plumagem; e a passarinha o que é? nem todos os deslizamentos de sentido têm a delicadeza de passarinha ou periquita.

Bacorinho é o leitãozinho, o filhotinho, no nordeste é carinhoso chamar a filharada de “meus bacorinhos”; já bacorinha é ela, de novo.

Cambado é o torto, o que se arrasta de um lado; cambada é a súcia, a corja, a quadrilha. Sapato é calçado, o que pisa; sapata é a mulher pisada por suas escolhas. Bicho é o gênero animal, bicha é o gênero animado. Bundo é o povo negro de angola…

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Eis, guerreiras, uma parte do campo de batalha. Se forem fazer alguma coisa, lembrem-se de que os dicionários apenas registram para a história os preconceitos que capturaram na linguagem.

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