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Disputa política e buraco de 11 milhões em verba põem Cinemateca em risco

Instituição na Vila Mariana atrasa salários, tem serviços cortados e se prepara para ser assumida pelo governo federal

Por Pedro Carvalho
Atualizado em 27 Maio 2024, 18h07 - Publicado em 12 jun 2020, 08h21
Protesto na quinta (4): manifesto alertou sobre “falência” (Van Campos/Fotoarena/Veja SP)
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Na manhã do último dia 4 de junho, um protesto levou dezenas de pessoas à frente da Cinemateca Brasileira, instituição responsável pelo acervo de filmes do país, na região do Parque Ibirapuera. De pé em uma banqueta, megafone à mão, o cineasta Roberto Gervitz, 62, leu um manifesto sobre a “grave crise que se aprofunda e pode levar à falência” o órgão federal, fundado em 1956. Assinavam o texto 42 associações nacionais e 36 internacionais — como o Festival de Cannes, o Festival de San Sebastian e a International Federation of Film Archives, que representa 152 cinematecas do mundo.

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O roteiro dos últimos meses na Cinemateca lembra os filmes sobre os labirintos da burocracia, como Eu, Daniel Blake. Em 2018, ela passou a ser administrada pela quase centenária Fundação Roquette Pinto, que venceu uma seleção do (então existente) Ministério da Cultura. O governo, porém, não pagou à Roquette Pinto as verbas desse contrato relativas a uma parte de 2019 e a 2020. Ao todo, deixou de repassar 11 milhões de reais à entidade.

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Sessão do Festival Internacional de Curtas, em 2019 (Divulgação Cinemateca/Veja SP)

A Roquette Pinto, uma organização social (OS) sem fins lucrativos, vinha bancando a instituição com recursos próprios, mas afirma que chegou ao limite. Seus 300 funcionários, incluídos os 120 da Cinemateca, não veem o salário desde março — os benefícios, como vale-refeição, foram cortados antes. Se fossem demitidos, não receberiam os valores rescisórios, informou a eles o sindicato da categoria. Contas de luz, segurança e outras despesas básicas estão vencidas, o que põe em risco o acervo. Na terça (9), a empresa que faz a manutenção da refrigeração, vital para o arquivo, deixou de atender o espaço por falta de pagamento. “Caso a Regina Duarte assuma a Cinemateca (como anunciou em live do presidente Jair Bolsonaro), não terá nem café para tomar”, disse Gervitz, diretor da Associação Paulista de Cineastas, uma organizadora do protesto.

Para entender por que o dinheiro sumiu, é preciso seguir um tortuoso enredo nos gabinetes de Brasília. Antes de assumir a Cinemateca, a Roquette Pinto tinha um outro contrato com o governo, no Ministério da Educação, para administrar a TV Escola, de cerca de 42 milhões de reais por ano. A gestão da Cinemateca estava ligada a um segundo ministério: o da Cultura (depois, transformado em Secretaria e incorporado à pasta da Cidadania e, nesta semana, transferido ao Turismo). Como uma OS não pode servir a dois ministérios ao mesmo tempo, o contrato da Educação sofreu um acréscimo (ou aditamento) para incluir a Cinemateca, em 2018.

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Público escasso: com sessões gratuitas de cinema (de quinta a domingo) e eventos, atrai 55.000 visitantes por ano (4.500 por mês) — menos da metade do pouco frequentado Museu Brasileiro de Escultura (MuBE) (Veja SP/Veja SP)

No fim do ano, o ministro Abraham Weintraub encerrou o acordo da TV Escola, por ter intenções de reformulá-la. A partir daí, duas teses jurídicas se contrapõem. Para a Roquette Pinto, o fim da parceria com a TV Escola não anula o contrato para gerir a Cinemateca. “Se houvesse vontade política, bastaria fazer um novo contrato com o Ministério do Turismo. A Roquette Pinto venceu o chamamento público de 2018, e ele segue válido até 2021”, declara uma fonte que participou das negociações pelo lado do governo, mas deixou a secretaria. O Ministério do Turismo, porém, pensa diferente: “Após o encerramento do contrato de gestão em 31/12/2019 por decisão do Ministério da Educação (…), não existe respaldo contratual para a Organização Social permanecer”, diz nota enviada a VEJA SÃO PAULO. E mais: “Neste momento, a Cinemateca Brasileira está em fase de reincorporação pela União”, segue o texto. Por que a intenção de reincorporá-la ao governo, se seria possível fazer um novo contrato com uma OS? Segundo pessoas envolvidas na negociação, essa solução ganhou embalo após a live de Regina Duarte.

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Exposição em homenagem a Hector Babenco, no ano passado: acervo raro (Divulgação Cinemateca/Veja SP)

No dia 20, a atriz participou de uma transmissão para anunciar que tinha recebido um “presente” (palavra dela) de Bolsonaro: a chefia da Cinemateca. O mandatário, com o gesto, dava à apoiadora um bibelô que ele próprio não possuía. A cadeira de supervisor da Cinemateca não é um cargo público. Seu atual ocupante, Roberto Barbeiro, é contratado em regime CLT pela Roquette Pinto. Na Secretaria Especial de Cultura (Secult), porém, o anúncio não foi entendido como uma confusão, e sim como uma ordem de Bolsonaro. Para que fosse cumprida (e a atriz ganhasse seu presente), os burocratas do departamento puseram em marcha o plano para trazer a Cinemateca de volta à gestão do governo.

Filme “Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles.
Cena de Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles: cenário desolador (Divulgação/Divulgação)

A passagem-relâmpago de Regina Duarte pela Secult (foi exonerada na quarta 10), que culminou no anúncio de sua acomodação na Cinemateca, é o capítulo mais recente de uma longa deriva de poder no órgão. Nos últimos meses, a secretaria viveu o limbo entre os dois ministérios. Além disso, passou por uma incessante troca de comando: teve à frente Henrique Pires, José Paulo Martins, Ricardo Braga, Roberto Alvim, novamente José Paulo Martins e Regina Duarte — que, segundo pessoas próximas, já teria decidido não querer mais assumir a instituição cinematográfica. A indefinição impediu que a Roquette Pinto negociasse os pagamentos atrasados (cerca de 7 milhões de reais relativos ao ano passado), o vácuo contratual e os gastos de 2020 (mais 4 milhões de reais). “Tivemos muitas conversas na Secult, mas pouca decisão”, explica um dirigente da OS. “A cada troca, levávamos vinte dias para marcar uma nova reunião. Quando conseguíamos, o responsável não podia resolver, porque aguardava a ida para o Turismo”, ele diz.

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Ainda assim, a Roquette Pinto decidiu manter a Cinemateca em funcionamento enquanto teve caixa, para evitar uma ruptura nos processos ou a demissão de uma equipe altamente especializada — há funcionários com quarenta anos de casa. Do contrário, talvez parte do patrimônio tivesse se perdido nas enchentes que castigaram a Vila Leopoldina (onde ficam alguns equipamentos) em fevereiro, quando funcionários ajudaram a conter a la- ma. “A situação é preocupante”, afirma o cineasta André Sturm, ex-secretário de Cultura de São Paulo — que, por sinal, teve seu primeiro emprego na Cinemateca, em 1989. “Quando falta dinheiro para um filme, ele pode ser feito depois. Mas, se falta para a preservação de um patrimônio, ele não pode ser recuperado mais tarde. É único.” Os gestores da Cinemateca viajaram pela última vez para Brasília no dia 20. Em reunião na Secult, ouviram que a instituição ficaria fechada até o fim do ano, para que o imbróglio fosse resolvido. Não se propôs solução para a dívida. “Fechar a Cinemateca até o fim do ano vai destruir o setor de audiovisual brasileiro, que agoniza neste período de pandemia de Covid-19 mas continua trabalhando e conta com a Cinemateca para fornecer o material necessário para edição e finalização das produções”, diz uma nota da Roquette Pinto.

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Exibição do filme O Menino e o Mundo, no projeto Cine Parque (Rodrigo Merces/Veja SP)

A OS tenta conduzir o impasse com prudência. Publicamente, não se opõe à reestatização. Tem inclusive proposto à Secretaria de Cultura ajudar na transição. Mas, no momento, entende que não poderá sequer fazer essa passagem de bastão. “A refederalização será feita rapidamente, para atender à ordem presidencial. O ‘que’ virá antes do ‘como’”, explica um dirigente da Roquette Pinto.

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A Vejinha falou com diversos funcionários, que preferem não se identificar devido à indefinição do caso. Alguns acreditam que serão substituídos por comissionados do Ministério do Turismo. A falta de uma equipe especializada seria catastrófica para o acervo. “O restauro não envolve só conhecimentos de química ou de física. É preciso amplo domínio da cultura brasileira para saber, por exemplo, qual luz um diretor pretendia dar a uma cena”, justifica Roberto Barbeiro, supervisor da Cinemateca. Há temores também sobre o viés dos eventos e exibições no futuro. O que parece descartada é a ida da estrutura para Brasília — que envolveria transportar 250.000 rolos de filme.

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(Veja SP/Veja SP)

A Cinemateca está ligada à história de São Paulo de diferentes maneiras, a começar pelo prédio onde foi instalada. O edifício de tijolos aparentes foi construído em 1887 para ser um abatedouro municipal. O prédio foi cedido à instituição pelo prefeito Jânio Quadros, em 1988. Fundada em 1956, suas origens remetem ao início dos anos 40, aos antigos Clubes de Cinema de São Paulo. Seu acervo guarda raridades como os jornais da TV Tupi (primeira emissora do país) e filmes como O Cangaceiro (1953, sucesso internacional dirigido por Lima Barreto), Candinho (1954, estrelado por Mazzaropi) e Carnaval Atlântida (1952, de José Carlos Burle e Carlos Manga). No ano passado, recebeu 55.700 visitantes nas sessões de filmes e nos 350 eventos que sediou (quase todos gratuitos). Seu portal de conteúdo teve mais de 57.000 visitantes.

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(Divulgação Cinemateca/Veja SP)

Para um espaço tão privilegiado, seu desempenho é bastante tímido e anterior à atual gestão: a cinemateca de Montevidéu, cidade com 1,5 milhão de habitantes, recebe 150.000 pessoas por ano. Parte disso se deve a uma crise financeira que se arrasta desde 2013. Até aquele ano, a instituição brasileira contava com a ajuda da Sociedade de Amigos da Cinemateca (SAC), que captava recursos e patrocínios de forma independente. Dessa maneira, o prédio foi recuperado e centenas de filmes restaurados, quase sempre com recursos privados. O caixa anual girava em torno de 30 milhões de reais e a equipe técnica era o triplo da atual. Então, sob a gestão de Marta Suplicy, o Ministério da Cultura decidiu investir contra a SAC. Abriu um processo que impediu a organização de captar recursos. Nos anos seguintes, a Cinemateca minguou. Funcionários respeitados internacionalmente foram demitidos e a frequência de exibições, reduzida. A passagem às mãos de uma OS, em 2018, era uma tentativa de remediar a situação — e, diga-se, levou anos para ser endossada em reuniões internas. “Além de captar dinheiro privado, uma OS tem mais agilidade. Imagine se, a cada evento, a Cinemateca abrir uma licitação para contratar ambulância”, diz um funcionário antigo da casa. “A Cinemateca tem necessidades muito específicas, como produtos químicos e equipamentos de restauro. É difícil um governo administrá-la de forma direta”, completa Sturm.

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(Veja SP/Veja SP)

Para especialistas, o modelo financeiro ideal da Cinemateca deve contar com recursos privados, mas sem prescindir do apoio do governo. “É um órgão de memória, nem tudo ali gera lucro”, diz Renata de Almeida, que dirige a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo desde 2011. O evento, entre diversos locais da cidade, é também sediado na Cinemateca. No ano passado, houve sessões ao ar livre no pátio do prédio, com acompanhamento ao vivo de piano. “Algumas OSs funcionam muito bem, a Osesp é um exemplo disso. Mas achar que uma OS será sustentável é uma ilusão. O funcionamento básico, como o pagamento de contas, tem de ser responsabilidade do governo”, ela acredita. “Um exemplo interessante é a Cineteca do México”, acrescenta o exibidor e distribuidor Adhemar Oliveira, diretor do Espaço Itaú de Cinema. “Ali existem dez salas de exibição, que geram receita permanente.”

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Os boletos em aberto preocupam o setor. “A Cinemateca não é apenas um arquivo, é um organismo vivo, que registra a produção atual, ajuda a formar profissionais, promove eventos e se relaciona com outras cinematecas do mundo. Foi fundamental nas pesquisas dos meus filmes”, diz a cineasta Laís Bodanzky, diretora da Spcine. “Uma mudança de gestão malfeita provoca um hiato perigoso. Se as contas de ar-condicionado, bombeiros ou umidificadores não são pagas, temos ali um novo Museu Nacional anunciado”, ela afirma, em referência ao incêndio na instituição carioca.

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“A Cinemateca sempre teve uma enorme importância para a produção audiovisual do país. Se essa indústria não for incentivada, nós vamos acabar consumindo apenas os produtos de fora”, alerta o diretor e editor Daniel Rezende, que trabalhou na montagem de Cidade de Deus e dirigiu Bingo. “É preciso ter atenção às possíveis intenções por trás de decisões políticas que afetem a cultura, principalmente em um momento em que ela sofre tantos ataques.”

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Sessão no Shopping Cidade Jardim: retomada interrompida (Fernando Moraes/Veja SP)

A crise pega o setor audiovisual em uma fase de forte apreensão — e, desta vez, faz lembrar outro tipo de roteiro: a tempestade perfeita de Mar em Fúria. Tanto as produções de filmes como os cinemas estão paralisados devido à quarentena. Mesmo nos shoppings em reabertura, as salas serão um dos últimos espaços a ser liberados e terão público reduzido por algum tempo. “Imaginamos que poderão ter entre 25% e 50% da ocupação”, diz Rena- to Gaspar, diretor de operações da brMalls, que tem quatro shoppings em São Paulo.

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(Veja SP/Veja SP)

A freada abrupta se dá no momento em que a atividade ensaiava uma retomada. Após dois anos de quedas consecutivas, o número de ingressos vendidos em cinemas do país tinha voltado a subir em 2019. Chegou a 174,6 milhões, alta de 6,8% em relação ao ano anterior. Para complicar, esse embalo veio dos filmes estrangeiros, que ampliaram a audiência em 8,3%. As produções nacionais — que são ajudadas de diferentes maneiras pela atividade da Cinemateca — amargaram queda de 1,6%. Foram 211 lançamentos, ante 253 em 2018, segundo dados da Ancine. “Em São Paulo, 2019 foi um ano de movimento bom nas salas”, diz Adhemar Oliveira. “Os mecanismos de apoio, como os patrocínios de estatais federais aos espaços, é que minguaram”.

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A Vejinha questionou o governo sobre as dívidas, as trocas na Secult e o processo de estatização. A resposta veio por meio de nota: “O Ministério do Turismo e a Secretaria Especial de Cultura esclarecem que trabalham na busca de uma solução para a manutenção da Cinemateca Brasileira e preservação da história do cinema brasileiro”.

No dia 28, o Ministério Público Federal em São Paulo passou a investigar a confusão na Cinemateca. Os procuradores enviaram um ofício à Secult, no qual deram prazo de sessenta dias para que seja esclarecida a “possível ausência de repasse orçamentário que vem preju- dicando o funcionamento da Cinemateca Brasileira e causando danos ao acervo audiovisual mantido pela citada entidade”. A secretaria, dona da caneta que vai escrever o final desse filme, ainda não respondeu. Até porque, bem, vive uma nova troca de chefia…

O VELHO NORMAL 

Os cinemas drive-in, uma moda nos anos 70, vão voltar a provocar burburinho em São Paulo após a quarentena. Entre as iniciativas confirmadas estão o Belas Artes Drive-in, no Memorial da América Latina (no alto), que terá 27 filmes a partir do dia 17. A Dream Factory, que já fez eventos como o Carnaval de São Paulo, anunciou o projeto Dream Park, que promete ser uma rede de drive-ins em estacionamentos, inclusive em São Paulo, a partir de julho. Shoppings como o Mooca Plaza e o Villa Lobos receberam propostas do tipo. “Para montar um drive-in, precisamos de 5 000 metros quadrados, o que não é fácil na capital”, diz André Sturm, responsável pelo projeto no Memorial. Esse não é o único desafio técnico. A topografia do espaço e a quantidade de carros influenciam, por exemplo, no tamanho da tela. “Tem a limitação visual do teto do carro”, diz Lourenço Braga, sócio da Haute/Fishfire, que estuda projetos do gênero na capital. Nas sessões, a pipoca e o refrigerante serão entregues nas janelas dos carros. O som do filme será transmitido pela FM dos rádios. “Assim não atrapalha a vizinhança”, explica Sturm. – Juliene Moretti

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BLECAUTE CINÉFILO

São Paulo ostenta a primeira posição na América Latina no consumo de vários artigos de luxo: em número de clínicas de cirurgia plástica, em vendas de camionetes 4×4, no uso da palavra “topzera”, e provavelmente nas aplicações de Botox. Mas é no consumo de cultura que estamos ficando para trás. E nem falo do número de livrarias, que sempre foi modesto na Pauliceia.

Nossa cinefilia minguou. A região metropolitana da Cidade do México possui 1.840 salas de cinema. Com população similar, a Grande São Paulo tem 568. Vários municípios vizinhos, com população superior a 100.000 habitantes, não têm um único cinema, como Embu das Artes, Poá, Mairiporã e Jandira.

Até na capital, de 96 distritos, 54 não possuem nenhuma sala, nem aquelas dentro de escolas. A prefeitura estatizou há uma década os abandonados Cine Marrocos e Art Palácio, que continuam sem uso.

Cine Marrocos.
Cine Marrocos: estatizado pela Prefeitura e sem uso (Raul Zito/Veja SP)

Os fanáticos pelo streaming devem achar que um bom serviço substituiu os cinemas. Para quem valoriza a sétima arte, é notório que o catálogo dessas multinacionais é mais esquálido que o de qualquer videolocadora de bairro de antigamente (tente procurar um clássico, de Billy Wilder a Visconti, de Saura a Kurosawa, e você vai chorar mais que em melodrama do Franco Zeffirelli).

Em Montevidéu, com 1,4 milhão de habitantes, a Cinemateca Uruguaia consegue atrair um público anual três vezes maior que a Cinemateca paulistana. Como organização social sem fins lucrativos, ela se mantém principalmente com anuidades pagas por milhares de sócios e com ajuda da prefeitura e do governo federal. Em plena quarentena, está exibindo algumas de suas joias por emissoras de TV locais.

Um apagão cinematográfico pode estar acontecendo agora, pois o fechamento das salas não congelou salários, impostos e o aluguel dos imóveis. O prazer de ver um filme na telona, na sala escura, ficará ainda mais raro na maior cidade da América do Sul? Para adultos de classes altas com paladar infantil, que se satisfazem com um cardápio anual de Os Vingadores e Disney, não deve ser um grande drama. Ah, mas a culpa é do ingresso que é caro. – Raul Juste Lores.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 17 de junho de 2020, edição nº 2691. 

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