Os bastidores da megaexposição de OSGEMEOS na Pinacoteca
Visitamos a mostra com os maiores nomes do grafite nacional em primeira mão; reabertura do museu será teste para novos protocolos no mundo da arte
A luz do Sol, que entra pelo teto de vidro do octógono, área central da Pinacoteca, encontra as cores da instalação Portal (2020). A obra é composta de uma escultura musical com formato de rosto de mulher e painéis de onde saem pirâmides com criaturas em fibras de vidro. Os personagens parecem emergir de uma experiência de transcendência — e muita espera. A exposição da qual participam, chamada OSGEMEOS: SEGREDOS, tinha abertura marcada para 28 de março. Com a pandemia, foi adiada. Quase sete meses depois, os bonecos amarelados característicos dos maiores nomes do grafite no Brasil torcem para que a capital possa entrar na fase verde do Plano São Paulo, norte da flexibilização da quarentena. Essa é a condição posta pela Prefeitura para que museus voltem a funcionar — e os paulistanos possam enfim mergulhar no mistério dos irmãos Gustavo e Otávio Pandolfo.
Caso não haja nenhuma reviravolta, a previsão é receber os visitantes a partir de quinta (15). Até o dia 23, a entrada será gratuita, mediante cadastro no site da Pinacoteca. Mesmo no contexto de crise, o orçamento destinado à exposição (a maior do calendário 2020) foi mantido. Pela Lei Rouanet, a Pina captou 11,5 milhões para este ano (Egito Antigo: do Cotidiano à Eternidade, à espera para voltar ao CCBB, custou 12,3 milhões). Além da área do octógono, a mostra ocupa um dos pátios do prédio na Praça da Luz e sete salas do 1º piso. Serão apresentados mais de 1.100 itens, dentre esculturas, pinturas, fotografias e desenhos. “Esse número variou muito durante a montagem, todo dia, entrava coisa nova”, explica o curador responsável, o alemão Jochen Volz, que também ocupa o cargo de diretor do museu.
Volz trabalhou por cerca de um ano e meio na construção da exibição, que tem ares panorâmicos, já que revisita a trajetória dos artistas, nascidos no bairro do Cambuci. “Fizemos um levantamento do nosso acervo desde os anos 80. Trouxemos algumas obras que estavam lá fora, tem também trabalhos feitos há muito tempo, mas nunca mostrados”, explica Gustavo. “Nós temos muitos segredos, vamos revelar alguns deles aqui. Foram esses segredos que nos fizeram encontrar o universo que a gente acredita (e se chama Tritrêz). É uma busca espiritual”, complementa Otávio.
A aventura dos visitantes começa na entrada principal da Pinacoteca, onde os irmãos também estilizaram o letreiro. Agora, a espécie de placa é luminosa, na cor vermelha, e com tipografia em estilo bomb, aquela das letras gordinhas, uma vertente do grafite. No corredor adiante, mais uma parada, está por lá a obra Piano (2019). Ela foi parte de um concerto que a dupla fez com o grupo de dança Flying Steps no Hamburger Bahnhof, instituição alemã de arte contemporânea. “Essa é uma peça central na exposição. Faz referência direta ao movimento hip-hop, do qual eles são herdeiros, e traz elementos importantes para o trabalho deles, como a música, a dança e essa verve dada à fantasia”, pontua o curador Volz. No tampo do instrumento musical, há um boneco fazendo um passo chamado Moinho de Vento. Foi o primeiro movimento que OSGEMEOS aprenderam. Isso, nos anos 80, na estação de metrô São Bento.
Naquela época, ali era um point que reunia futuras estrelas da cultura brasileira, como os rappers integrantes da banda Racionais MC’s e o MC Thaíde. “Uma vez por mês, a gente fazia um encontrão, com toca-discos. Cada um colocava sua dança. Eles eram bem garotos, 14, 15 anos, ou até menos”, relembra o produtor musical Humberto Martins Arruda, mais conhecido como DJ Hum, que foi o responsável pela criação do apelido dos artistas. “Em uma dessas reuniões, ficou aquela confusão: ‘Otávio, Gustavo, Gustavo, Otávio, você é quem mesmo?’. De repente, falei: ‘Ô, gêmeos do caramba, vem aqui logo.’ Não aguentei”, relembra DJ Hum.
A simbiose dos artistas está em todos os cantos da Pina. Em um dos pátios, há uma lua caída, com 1,65 metro de diâmetro, crateras e tudo o mais. No tronco principal da mostra, as sete salas do 1º andar, o percurso começa com desenhos feitos pelos irmãos desde a infância. Eles estão colados nas paredes por meio da técnica de lambe-lambe. Um carro pegando fogo, nas versões de Gustavo e Otávio, chama atenção. Perto das chamas, veem-se fotos do aniversário de 1 ano, data especial, já que o nascimento deles foi marcado por um erro. “Minha barriga estava muito grande, então o médico me pediu para fazer um exame. Ao olhar o resultado, disse que só tinha uma criança”, recorda a mãe deles, Margarida Kanciukaitis, de 77 anos. “Quando estava na sala de cirurgia, o médico puxou a placenta e veio outro menino, outra criança. O médico ficou tão desnorteado que saiu e me deixou com a enfermeira. Eles eram tão pequenininhos, todo mundo dizia que iam morrer.”
Depois daquilo, dona Margarida não teve cabeça para pensar em nomes para os rebentos. Gustavo foi escolha de uma prima, chamada Dina, e Otávio apareceu na placa do nome da via onde ficava a maternidade, a rua Tenente Otávio Gomes, na Liberdade. Com tanta emoção envolvida, os pequeninos foram cercados de atenção não só pela mãe e pelo pai, Walter Pandolfo, já falecido. O irmão mais velho, Arnaldo, os estimulava a desenhar desde cedo e a irmã, Adriana, também ficava por perto. “Era um cuidado mais maternal, queria até escolher a roupa deles”, diz ela.
A união dos quatro irmãos se mantém até hoje, agora no ateliê d’OSGEMEOS, no vizinho Cambuci. Arnaldo é quem cuida de detalhes de construção das engenhocas elétricas. Adriana é responsável pela contabilidade e organização da agenda dos dois. Ainda de olho no círculo familiar, é importante falar que os avós maternos, já falecidos, ainda se fazem presentes. Na primeira sala, haverá um blusão que a “vó”, Dorinda Marcilio, fez especialmente para eles. A influência do “vô”, Albino Kanciukaitis, amante de música clássica, é referenciada em uma instalação inédita, um desdobramento de uma exposição chamada Vertigem, realizada em 2009 no Museu de Arte Brasileira — Fundação Armando Alvares Penteado (MAB- Faap) e que depois viajou pelo país. Em uma das faces da obra observa-se um barco à deriva, onde se lê “Koln 3”. É o nome da embarcação que trouxe o ancião para o Brasil, quando ele tinha 9 anos. A instalação completa ocupa uma sala com 63 metros quadrados e é composta de quatro painéis. Em três deles, há uma trama quadriculada, que remete aos trabalhos da op art, movimento pautado por experimentos com ilusão de óptica.
Indo mais fundo, esse pessoal não quer retratar uma paisagem de modo verossímil. Pelo contrário, querem mostrar por meio de combinações de cores e formas, em composições geométricas, que é possível perceber elementos de diferentes formas. OSGEMEOS mergulham nessa onda, mas dobram a aposta. Seus personagens entram e saem dos losangos, de forma divertida, quase que dizendo que há ainda mais perspectivas para explorar. Mais adiante, um novo acontecimento. A teia colorida se desfaz, deixando um quadradinho cá, outro acolá. Chega-se então ao mar e observa-se um farol, com uma personagem misteriosa no topo. Novamente, Otávio e Gustavo parecem apontar para diferentes formas de apreensão. Ali, o que parece mais real é um tanto de sonho. “Te incomoda misturar?”, parecem sussurrar os bonecos amarelos, ao final da imersão. “Com certeza, há uma reflexão sobre a história da pintura, mas há também uma conexão com informações visuais que vêm de outras áreas, como a cultura popular e a televisão. Se a gente pensar no uso desses efeitos da op art, aconteceu nas artes visuais em algum momento, mas eles também estavam presentes na produção de clipes musicais. Na produção d’OS- GEMEOS, tudo se mistura”, explica Volz, que abre novos caminhos para a compreensão da obra e da produção dos artistas.
No grupo de trabalhos-que-você-tem-de-ver, há ainda no 1º andar duas telas feitas em 2013 em parceria com Banksy, o mais famoso dos artistas anônimos. Elas foram apresentadas embaixo do High Line, famoso parque suspenso de Nova York. “Uns amigos nos apresentaram, não fomos atrás. É só isso que podemos dizer”, diz, lacônico, Otávio. Ele destaca um trabalho inédito presente na mostra, um vagão de metrô todo grafitado, no estilo Nova York dos anos 70: “A gente tinha muita influência gringa, as informações não chegavam fácil, então um conseguia uma revista e passava para o outro.” Essa dificuldade acabou estimulando-os a criar sua publicação em 1995, a Fiz Graffiti Attack. “O lançamento foi lá no Cavear, uma casa noturna. Tinha artistas pintando, o Tinho, o Binho, e uma roda de break”, rememora Gilmar Del Marco, de 44 anos, fã de longa data da dupla. Também artista, ele guarda os exemplares da revista com ciúme: “Não empresto para ninguém. Você até acha na internet, mas virou coisa de colecionador. Quem tem, tem.” Uma busca rápida comprova a informação: o primeiro número pode ser encontrado por 400 reais na OLX.
Com entusiasmo, Dingos, apelido de Gilmar, fala da expectativa para a abertura da superlativa mostra na Pina. “De coração, essa exposição vai salvar o ano. Não é média. Estarei lá na fila, com álcool em gel e máscara, em respeito à minha família.” No mesmo fluxo de admiração, o artista Rui Amaral, hoje diretor de arte de programas da TV Globo, elogia a dupla: “Gosto muito do trabalho deles, são supertrabalhadores, insanos com o pincelzinho na mão. Eu os conheci quando eles tinham 13 anos e apareceram no Museu de Arte Moderna para me ver pintando um mural”. Rui também fala do preconceito de um circuito mais tradicional de artes visuais com que começa sua trajetória nas ruas. “A simplicidade e a ousadia incomodam o erudito. O cara pinta um monte de coisa, mas não estudou. É totalmente empírico. Não tem teoria de cor, de forma. Ele vem e vomita. Artes plásticas é como oboé, cravo e violino. E o grafite é samba”, teoriza.
Outra face da questão é também a rede que envolve os profissionais. “São dois caminhos bastante distintos, o do artista que sai da faculdade e desde jovem sabe que tem de manter uma série de relações, e o do artista que vem da experiência na rua e tem uma relação direta com a população. Ele precisa encontrar interlocutores em ambientes que não conhece”, aprofunda o debate o curador colombiano Pedro Alonzo, que trabalhou com OSGEMEOS em um mural em Boston. A obra foi depois alvo de reclamação na cidade americana, porque uma parte da população dizia ver ali um incitação ao terrorismo, devido ao fato de um boneco estar encapuzado (haja associação). Alonzo, que também assinou o texto do catálogo da exposição A Ópera da Lua, feito pela dupla de 2014, ressalta que a comunicação entre os dois irmãos é um ponto fundamental para entender as obras que fazem. “Eles parecem ter uma mente compartilhada, planejam o que fazem, mantêm um fluxo espontâneo quando produzem”, afirma ele, que rejeita associações da dupla com a turma de André Breton (1896-1966). “Eles têm elementos surreais, mas não é possível relacioná-los nem com Salvador Dalí (1904-1989), nem com René Magritte (1898-1967). É melhor falar que eles criam uma paisagem mental conjunta, com elementos fantásticos”, diz Alonzo.
A despeito de considerações teóricas sobre suas produções, OSGEMEOS continuam abertos à cidade e a seu turbilhão de sinais. Antes da pandemia, em um domingo, dia 8 de março, às 9 horas da manhã, eles partiram de seu ateliê no bairro do Cambuci junto à reportagem de VEJA SÃO PAULO. Eles caminharam calmamente, com suas mochilas, entre acenos e comentários sobre o dia a dia, em direção à Baixada do Glicério, área barra-pesada na região central. Os rastros de tinta pelas roupas e meias funcionavam como pistas para os transeuntes que cruzavam com eles. O tilintar que rompe os tecidos das mochilas também. Em um átimo de tempo, debaixo de um viaduto, perto da sede da igreja Deus é Amor, o barulho cessou. Eles pararam, se olharam e entraram em uma quadra abandonada, fazendo malabarismo com o corpo em uma fresta da grade enferrujada. Com uma garrafa de água na mão e uma esponja, Gustavo, que para o irmão é simplesmente Gu, começou o trabalho. “A gente pintou aqui há duas semanas, mas depois eles vieram e apagaram tudo, jogaram cal. Vamos limpar e fazer outro”, explica. Durante pouco mais de uma hora, os irmãos se revezaram para fazer um novo grafite. Um em pé. O outro agachado. Um fazendo o contorno da cara do boneco, que surge quando retirada a camada de cal. O outro, que pega uma bituca de cigarro no chão, pinta com tinta branca e faz o olho do novo personagem amarelado.
Os dois acompanham a movimentação de duas viaturas da Guarda Civil Metropolitana, que aparece e confisca os produtos vendidos por ambulantes na calçada. Mas é Otávio, em silêncio, que pede que o alemão Peter, amigo que participava do rolê, seja chamado e avisado que a situação ficou um pouco tensa. De novo, é ele, Otávio, que mostra em um papel a mensagem que deixaria por lá: “Debaixo de uma parede cinza existe um amor pela nossa cidade…”. Depois dos sorrisos, grade atravessada de novo, eles abraçam dois fãs que aparecem e fazem pedidos. “Faz uma tag, mano, aqui, na minha mochila”, diz um dos rapazes. Em poucos segundos, uma mensagem prateada marca o tecidos.
No percurso de volta, sem adrenalina, o que fica é sintonia entre a dupla e uma frase dita por um homem que passou por lá: “Eles voltaram. Os cara apagou o desenho, maior tiração”. Esse sentimento é reiterado pelo comerciante José Teodósio, morador da quadra debaixo do viaduto, que mantém lá uma banquinha onde vende espetinho de linguiça, cigarro e cachaça. “Para a gente, é bom que seja colorido. É a nossa casa”, diz o sergipano. Para a gente também, seu José.
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PROTOCOLOS DE SAÚDE NA PINA
Ingressos: não serão vendidos na bilheteria. Os visitantes devem adquiri-los na internet previamente. Na entrada, é preciso apresentar o tíquete impresso ou no celular.
Máscaras: o uso desse item de proteção é obrigatório em todas as dependências do museu. Atenção, não haverá doação ou venda de máscaras na entrada ou arredores.
Antecedência: seu horário de entrada no museu estará marcado em seu ingresso. A tolerância é de quinze minutos de atraso. Passado esse tempo, seu tíquete perderá validade.
Entrada: evite trazer bolsas e mochilas, pois é proibido portá-las nas salas da exposição. Todos passarão por um detector de metais. A temperatura do visitante será aferida.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 14 de outubro de 2020, edição nº 2708.