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Profissionais que driblaram o preconceito e ocupam cargos de liderança

Conheça as histórias de sucesso de profissionais com deficiência (eles representam menos de 1% desse universo)

Por Ana Carolina Soares
Atualizado em 15 jan 2021, 16h25 - Publicado em 16 ago 2019, 06h00

“Você tem de ter uma atitude positiva e tirar o melhor da situação na qual se encontra.” A frase do físico britânico Stephen Hawking — morto em 2018 após 55 anos de convívio com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), doença degenerativa incurável — tornou-se um ensinamento de vida para o publicitário e professor Danillo Casanova, 36. Desde 2013 ele sofre de uma doença semelhante e também irreversível, a esclerose múltipla, que debilita os nervos. Mas decidiu ir contra as estatísticas e prosseguir no mercado de trabalho, apesar das inúmeras dificuldades: da expressão de piedade — e às vezes até de repulsa — dos gestores das empresas na hora da entrevista à locomoção pela cidade. Hoje, possui um cargo estratégico em uma multinacional e viu seu salário triplicar nos últimos oito anos.

Danillo é um caso raro. Os dados estampam uma situação triste enfrentada pelos 810 000 moradores da capital que têm limitações graves (cegos, paraplégicos, tetraplégicos e com distúrbios mentais avançados). De acordo com a Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência, cerca de 70% teriam condições de arrumar um emprego, mas só 42 800 contam com carteira assinada, 120 200 estão desempregados e o restante vive na informalidade. O artigo 93 da Lei Federal nº 8213, a conhecida Lei das Cotas, obriga empresas com 100 ou mais funcionários a reservar de 2% a 5% de seu quadro a esse público. As companhias declaram disponibilizar 37% das vagas de liderança — de gerentes e diretores — para pessoas com deficiências físicas (PcDs), segundo pesquisa da Rede Empresarial de Inclusão Social. “Mas na prática menos de 1% ocupa esses cargos”, constata Ivone Santana, secretária executiva do órgão. Os recrutadores dão a desculpa de que muitos não são preparados e citam o censo da educação superior de 2016, que mostra os PcDs com uma fatia de apenas 0,45% do total de matrículas. “Mas não é bem assim, pois quase 70% do meu banco de 200 000 nomes tem pelo menos ensino superior completo”, diz Andrea Schwarz, CEO da iigual, uma espécie de agência de empregos especializada em inclusão.

Conheça a história desse e de outros paulistanos que conseguiram vencer essa exigente corrida de obstáculos.

Líder campeão

Seis meses atrás, Thiago Bello, 32, coordenador financeiro da Serasa Experian, começou a chefiar um time de nove pessoas no escritório de São Carlos, a 232 quilômetros da capital. “Sou um líder que gosta de motivar a equipe. Sonho chegar à diretoria”, afirma. Nessa conquista, houve só dois contratempos: a busca pelo apartamento na nova cidade (na maioria, ele nem sequer conseguia cruzar a porta com sua cadeira de rodas) e o remanejamento de sua namorada, a administradora Hemanuele Oliveira. “Assim que me mudei, iniciamos o relacionamento e não pudemos trabalhar mais juntos.” Bello entrou na Serasa há quinze anos, como estagiário em uma vaga de cotas para PcD, sigla corporativa que significa Pessoa com Deficiência. “Passei meses mandando currículos e percebi que muitas empresas só disponibilizam vagas para candidatos com problemas leves”, declara o economista, que se tornou paraplégico aos 10 anos após ser atingido por uma bala perdida ao deixar a escolinha de futebol, perto de Diadema, onde vivia. “Foi um choque, mas optei por enfrentar as dificuldades e vencer.” Do sonho de se tornar o novo Ronaldo Fenômeno, Bello aprendeu a jogar tênis de mesa paralímpico na Associação de Assistência à Criança com Deficiência (AACD). Foi campeão paulista e brasileiro na categoria entre 2001 e 2004. Quis procurar emprego logo no 1º ano da faculdade de economia no Mackenzie e passava em média oito horas diárias entre envio de currículos e entrevistas. Entrou na Serasa por cotas, mas recebeu quatro promoções por mérito e seu salário aumentou dez vezes desde então. O segredo do sucesso? “Não me deixo abater e me esforço. Sempre disse aos meus chefes: ‘Passem a bola para mim que marco o gol’.”

Homem branco, de barba com camiseta rosa
“Quero seguir no mundo corporativo até onde a doença permitir, e depois amaria dar palestras para inspirar pessoas”, planeja (JOÃO BERTHOLINI/Veja SP)

Susto no RH

Em seus quase quinze anos de carreira, o publicitário Danillo Casanova, 36, jamais pleiteou uma vaga na área de PcD. Ele descobriu que sofria de esclerose múltipla (doença degenerativa incurável) aos 28 anos, quando ainda era novato na profissão, e a três semanas do casamento com a securitária Rosemeire Casanova, 36. “Ao saber que minha dificuldade de mover meus braços só iria piorar e que em questão de tempo eu estaria em uma cadeira de rodas, minha reação foi investigar tudo a respeito da enfermidade e traçar uma rota sobre como seria a melhor forma de viver com ela”, conta. Na época, ele trabalhava como analista em uma empresa de marketing digital e não se constrangeu com as inúmeras perguntas inusitadas dos colegas e gestores, na linha do “isso pega?”. Apesar das dificuldades crescentes, especialmente no lado direito do corpo, Casanova seguiu em frente. Meses depois, por mérito, recebeu uma promoção. Nos últimos oito anos, trocou de emprego cinco vezes, sempre galgando cargos e salários maiores. “Ao me verem mancando como um zumbi do The Walking Dead, as funcionárias do RH se assustavam inicialmente, mas meu currículo pesou mais do que a deficiência”, conta o atual especialista de produto da multinacional NeoGrid. “Meses após minha contratação, as equipes das empresas me perguntavam se poderiam me incluir nas cotas. Sei que não ganho nada com isso, mas nunca me opus”, completa o publicitário. Ele é a favor da lei, mas não nos moldes atuais. “As empresas cumprem o texto, ficam longe das multas, mas não oferecem um plano de carreira”, acredita. Há três anos, Casanova também se tornou professor na Faculdade de Informática e Administração Paulista (Fiap) na área de inteligência de negócios. “Quero seguir no mundo corporativo até onde a doença permitir, e depois amaria dar palestras para inspirar pessoas”, planeja.

 

Mulher branca, loira, sentada em uma mesa no ambiente de trabalho
“Trata-se de uma deficiência, sim, e assumir isso é uma questão de identidade” (ALEXANDRE BATTIBUGLI/Veja SP)

Equipe inclusiva

“Não sou a heroína nem a coitadinha, mas uma profissional que busca a excelência”, define-se Rita Carvalho, 45, que comanda cerca de trinta pessoas no prédio do Itaú no Itaim como superintendente na diretoria executiva de Global Markets & Treasury (GM&T). Aos 21 anos, ela cursava matemática na Universidade Federal do Rio de Janeiro quando foi atingida por uma bala perdida ao dirigir de volta para casa. Os estilhaços afetaram seu olho direito e Rita precisou colocar uma prótese no local. Rita possui visão monocular, ou seja, só enxerga com um olho. Pela lei estadual, é considerada pessoa com deficiência física desde 2011. No país, o assunto começou a ser discutido no Senado em julho. “Em um primeiro contato, as pessoas acham que sou estrábica e um pouco desastrada, por ter dificuldade de fazer movimentos simples, como colocar água em um copo, mas nunca precisei declarar minha deficiência em uma entrevista de emprego”, conta a superintendente. Em meados de 2017, após cinco anos no banco, entrou na cota de PcD da empresa a convite da equipe de recursos humanos. “Trata-se de uma deficiência, sim, e assumir isso é uma questão de CONTRA OS RÓTULOS identidade”, diz. “Na minha trajetória, sofri mais preconceito por ser mulher.” Em outra empresa, ao pedir transferência para Londres, onde viveu quatro anos, seu chefe se surpreendeu com a “ousadia” da mãe de um menino de 3 anos, na época. “Ele perguntou sobre a reação do meu marido, os planos da família, mas logo percebeu que suas preocupações não faziam sentido e concedeu a mudança”, lembra. Hoje a líder faz questão de manter em seu time cerca de 10% de pessoas com deficiência. Entre elas, um estagiário com autismo que ela pretende efetivar. “Ele é extremamente focado, um dos meus melhores profissionais.”

Mulher, Cadeirante de camiseta verde e cabelos escuros
“Mostrar reportagens variadas simboliza que posso muito bem trabalhar como qualquer outra pessoa” (Reprodução/Veja SP)

Contra os rótulos

Repórter do Fantástico, da Rede Globo, há nove anos, a jornalista Flávia Cintra, 46, conduziu matérias sobre acessibilidade em apenas três ocasiões. “Foi ideia da direção do programa e concordei na hora, mas não preciso ficar presa a esse tema só porque sou cadeirante”, acredita. Há dez anos, sua trajetória inspirou a personagem Luciana, interpretada por Alinne Moraes, na novela Viver a Vida, da emissora onde trabalha. Como na trama, ela sofreu um acidente de carro aos 18 anos na Rodovia Anchieta e se tornou tetraplégica. Foram várias semanas para a adaptação, mas ela saiu da cama, dispensou os ganhos mensais da aposentadoria por invalidez (até o acidente, trabalhava como secretária em um cursinho cheio de escadas), matriculou-se em jornalismo na Universidade Santa Cecília (Unisanta), em sua cidade natal, Santos, e começou a escrever um blog com suas experiências. Em 1997, a Organização das Nações Unidas (ONU) a selecionou para fazer um treinamento em Washington sobre liderança de mulheres com deficiência em países do Terceiro Mundo. A partir daí, começou a trabalhar no Centro de Vida Independente, uma organização sem fins lucrativos em São Paulo. Na sequência, deu expediente no SBT e na TV Cultura, no Teleton (maratona televisiva em prol da AACD), e ajudou a fundar o Instituto Paradigma, que promove a educação inclusiva. Em 2006, voltou para a ONU como integrante da comissão brasileira para o lançamento da Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência. Como principal conclusão, o evento estabeleceu aos governos que, se há uma anormalidade, ela não é inerente à pessoa com deficiência, mas à sociedade, que apresenta dificuldades de interação com o ambiente. Hoje em dia, mesmo evitando pautas temáticas, Flávia segue militante. “Mostrar reportagens variadas simboliza que posso muito bem trabalhar como qualquer outra pessoa”, diz a jornalista.

Mulher portadora de deficiência , trabalhando na sua mesa do escritório
“Curiosamente, hoje em dia voto nessa mesma escola e me emociona vê-la agora com rampas e elevadores.” (ALEXANDRE BATTIBUGLI/Veja SP)

A escalada da advogada

“Nada pior do que precisar ser carregada, e acredito que muitos desistem de estudar e seguir uma carreira por causa disso”, afirma Renata Kaliane Silva Vieira, 43, assistente técnica da presidência do direito público do Tribunal de Justiça. Aos 6 meses de idade, ela contraiu poliomielite vacinal, que afetou definitivamente o movimento de suas pernas. Aprendeu a andar, sempre com o auxílio de um par de muletas, aos 3 anos. Para Renata, o maior obstáculo superado em sua carreira foi a dificuldade de locomoção. Em razão da raridade dos ônibus adaptados, habituou- se a circular pela cidade de carro. “Estudava em uma escola estadual no Itaim, e várias vezes minha mãe precisou ir à delegacia porque a diretora insistia em me colocar em turmas em andares superiores, acessíveis apenas por escadas.” As advertências dos policiais não surtiam resultado e, para que Renata não interrompesse seus estudos, os amigos a carregavam na chegada, na saída e também na hora do recreio. A turma tinha boa vontade e, por isso, ela não falava sobre os desconfortos nesse “transporte alternativo”: o pânico de cair, além do incômodo de ser tocada muitas vezes nos seios e quadris. “Curiosamente, hoje em dia voto nessa mesma escola e me emociona vê-la agora com rampas e elevadores.” Formada em direito pela FMU, decidiu prestar concurso público como escrevente do Tribunal de Justiça em 2000, em uma vaga PcD. Depois de passar, recebeu três promoções e seu salário aumentou em 50%, tudo por mérito. “Sei que a aposentadoria para deficientes é mais cedo e especial, mas não me imagino usando esse benefício porque sou apaixonada pela minha profissão”, conta a advogada, que planeja também lecionar.

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Homem branco de terno com deficiência visual na frente de uma empresa
“Aqui, percebo que não há preconceitos como no sul do país, sempre fui respeitado por todos, mas há sérios problemas de inclusão” (MARCELO JUSTO/Veja SP)

Justiça sem preconceito

Em 2005, o advogado Cláudio Adolfo Martins Haase, 41, virou notícia: o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, indeferiu sua inscrição no concurso para juiz federal substituto. Cego desde bebê (teve retinopatia da prematuridade), ele ganhou manchetes em jornais de todo o país por dizer que foi barrado por causa de sua deficiência. “Outros colegas com formação semelhante conseguiram se inscrever, então concluí que só poderia ser porque não enxergo”, lembra. Ele processou o TRF, mas a decisão se manteve. “Era a equipe do próprio órgão que julgou, a decisão não seria diferente.” Nascido em Florianópolis, ele trabalhou como analista em um banco na cidade, enquanto tentava vagas em escritórios de advocacia. Não conseguiu e partiu para os concursos públicos. Em 2010, conquistou o cargo de procurador da Assembleia Legislativa de São Paulo, e desde então analisa desvios éticos dos deputados e funcionários da casa. “Aqui, percebo que não há preconceitos como no sul do país, sempre fui respeitado por todos, mas há sérios problemas de inclusão”, conta. Haase mora em um flat nos Jardins, tornou-se adepto dos serviços de delivery e se desloca de transporte por aplicativos até para ir à padaria. Faz de tudo para evitar andar nas calçadas cheias de desníveis ou sujeitar-se à aventura de atravessar um semáforo. Sobre sua carreira, não usa a palavra “superação”, por acreditar que não há como passar por cima de nenhuma deficiência (como faz Al Pacino no clássico Perfume de Mulher, em que dança tango e até dirige, lembra o procurador). Seu lema de vida serviria para qualquer pessoa: aceitar-se e respeitar o outro, cada um do seu jeito. “Fala-se que a Justiça é cega por um símbolo da imparcialidade. E assim deve ser a sociedade, com oportunidades iguais para todos”, conclui.

Mulher cadeirante, sorrindo para a câmera no seu ambiente de trabalho
“Lá, pude ir a todos os museus, circular pelas ruas, sem precisar de ajuda. Como arquiteta, eu me senti obrigada a trazer esse conceito para o Brasil, e especialmente para a minha cidade” (ALEXANDRE BATTIBUGLI/Veja SP)

Arquitetura para todos

A mansão na Serra da Cantareira possuía quatro andares, todos interligados com escadarias intermináveis, bem no estilo daqueles casarões clássicos de filmes como E o Vento Levou. Desenhado em 1984, foi o primeiro projeto da arquiteta Silvana Cambiaghi, 59, que desde a infância anda em cadeira de rodas por causa da paralisia nas pernas e no braço direito provocada pela poliomielite. “Fui ensinada a me adaptar ao mundo”, diz a profissional, que durante anos foi carregada por pedreiros na hora de visitar suas obras. Após se formar, no início da década de 80, na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Farias Brito, em Guarulhos, ela passou dois anos à procura de emprego. “Uma tia até me ofereceu a aposentadoria dela, por não acreditar que eu conseguiria me inserir no mercado de trabalho”, lembra. Acabou abrindo o próprio escritório, em sociedade com uma amiga. A noção de que o mundo deveria ser acessível a todos só surgiu depois de uma viagem que ela fez à Europa, no início da década de 90. “Lá, pude ir a todos os museus, circular pelas ruas, sem precisar de ajuda. Como arquiteta, eu me senti obrigada a trazer esse conceito para o Brasil, e especialmente para a minha cidade”, conta. Silvana tornou-se mestre em acessibilidade pela Universidade de São Paulo, começou a lecionar na Associação Brasileira de Normas Técnicas e hoje preside a Comissão Permanente de Acessibilidade da prefeitura. Além de se aprimorar nesse setor, ela dá aulas de design de interiores na pós-graduação da Universidade Estácio de Sá e escreveu um livro sobre projetos em 2008. Em seu escritório, chega a criar quatro plantas residenciais e corporativas por mês. Todas as suas construções são acessíveis, ela frisa, não só para cadeirantes, mas para pais que conseguem entrar com o carrinho do bebê no apartamento e para idosos com suas limitações. “Imóveis com essas características são mais valorizados, afinal todo mundo, a qualquer momento da vida, está sujeito a ter seus sentidos comprometidos. Precisamos dessa consciência.”

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 21 de agosto de 2019, edição nº 2648.

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