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O multiempreendedor da quebrada que está mudando o Campo Limpo

À frente da Agência Popular Solano Trindade, Thiago Vinícius se divide entre um coworking, um mercadinho, um restaurante e o Festival Percurso

Por Helena Galante Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 6 dez 2019, 12h05 - Publicado em 6 dez 2019, 06h00

Para chegar ao Campo Limpo, é necessário cruzar uma ponte. De carro ou de ônibus, um caminho mais reto para quem vem da Sé (são cerca de 25 quilômetros de distância e pelo menos uma hora, com trânsito bom) passa pela Ponte João Dias. Para quem não é dessa quebrada, porém, a viagem costuma incluir uma travessia um tanto mais complicada, ainda que simbólica. “É preciso sair da preguiça social para definir como destino no Waze uma região periférica”, afirma Thiago Vinícius, empreendedor à frente da Agência Popular Solano Trindade.

Mesa coletiva na agência localizada na Rua Batista Crespo (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Numa casa alugada na Rua Batista Crespo, 105, a poucos metros do terminal de ônibus da região, ele e muitos amigos (coletivo é a palavra de ordem) colocaram para funcionar um coworking, uma rádio, uma venda de produtos orgânicos e, desde outubro, um restaurante. “Quando falo do direito à cidade, a gente quer que a galera venha aqui à favela, e a gente quer andar nos Jardins sem parecer suspeito. A gente também gosta de cerveja artesanal e comida boa.”

David Hertz, da Gastromotiva: programa de formação para 24 alunos no Campo Limpo em 2020 (Divulgação/Divulgação)

No próximo domingo (15), o maior evento da agência, o Festival Percurso, oferece bons motivos para reunir quem quer encurtar distâncias dentro da própria cidade. Na sua sexta edição, a Praça do Campo Limpo será tomada por barraquinhas de 100 empreendedores da região. “Na quebrada, as pessoas viram empreendedoras por necessidade, porque o marido morreu ou algo assim. A gente mostra que é possível transformar essa realidade e se aperfeiçoar”, defende Thiago. Em menos de oito horas, por WhatsApp, ele conseguiu o cadastro de todos os participantes. Nenhum deles paga para estar lá — nem dá parte de seus rendimentos à Solano Trindade depois. “Mas todo mundo tem de vir aos encontros pra receber capacitação e não chegar mortão ao festival.”

Videomaker KondZilla dará uma palestra no Perifa Talks (Leo Martins/Veja SP)

Um dia antes, no sábado (14), a empresa sedia o Perifa Talks, ciclo de palestras inspirado no modelo TED. Entre os convidados para falar sobre sua própria história de superação está o videomaker KondZilla, filho de um pedreiro e uma funcionária pública que cresceu na periferia do Guarujá e hoje é dono de um dos canais de YouTube mais acessados do planeta. No palco principal, o cantor Rael é uma atração muito aguardada. “Para mim, é uma honra estar junto de quem sempre levou a cultura para a quebrada. Como o acesso é gratuito, muitas famílias podem ir. Tem criança que vai ver pela primeira vez um show lá”, afirma Rael.

QuebradaCast, na Rádio Mixtura: “A economia é uma bandeira de luta”, diz Thiago Vinícius (Alexandre Battibugli/Veja SP)

No setor gastronômico, a participação mais famosa é da chef Bel Coelho, que conheceu Thiago Vinícius durante uma mesa sobre a cadeia dos alimentos. “Ele me corrigiu, disse que a periferia queria, sim, comer melhor”, lembra Bel. Para este ano, ela planeja dar uma aula aberta sobre aproveitamento total dos ingredientes. “Tento pensar em receitas que aumentem o repertório de quem pode trabalhar cozinhando. Provavelmente, vou usar pancs, as plantas alimentícias não convencionais.” Um cardápio que poderia estar na Vila Madalena, onde funciona o seu restaurante Clandestino, mas, graças à ponte de Thiago, estará no Campo Limpo.

Festival Percurso 2018: edição deste ano terá 100 empreendedores reunidos (José Cícero da Silva/Divulgação)

Tal habilidade de transitar entre universos separados por um precipício de desigualdades econômicas e preconceitos revela um pouco da trajetória incomum de Thiago. Nascido no Campo Limpo, ele passou parte da infância no Jardim São Marcos, em Embu, junto ao Pirajussara — área constantemente sujeita a enchentes. “Lembro de brincar de esconde-esconde e levar bronca da galera do tráfico. Não era para correr porque eles achavam que era a polícia chegando.” Em 1998, aos 8 anos, entrou para o Projeto Arrastão, mais importante para a sua formação humana do que a Escola Estadual Presidente Kennedy, na sua opinião. Lá, desenvolveu um projeto de coleta seletiva e educação ambiental que foi escolhido, em 2004, pela aceleradora Artemisia. “Aos 15 anos, tive a oportunidade de implantar e coordenar esse projeto”, recorda. “Com os primeiros 600 reais que ganhei, bati a laje da casa da minha mãe. É um símbolo de status positivo para ela, mostra que seus filhos estão trabalhando em prol da família.” Seus colegas sentiam a mesma provocação para contribuir com dinheiro em casa, mas Thiago acabou encontrando outras formas de fazê- lo. “Os caras diziam que eu vivia andando pra cima e pra baixo com um monte de papel. Depois daquela laje, vi que podia ganhar dinheiro com os papéis que tinha na mão.”

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Organicamente Armazém: hortaliças direto dos produtores (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Em pouco tempo, porém, o contexto das ONGs não atendia mais ao horizonte do rapaz. “Depois que assisti ao filme Quanto Vale ou É por Quilo?, comecei a pensar na mercantilização da pobreza do terceiro setor. Vi que as organizações se aproveitavam da fome das pessoas, não queriam acabar com ela. Foi quando conheci a União Popular de Mulheres e a força do empreendedorismo raiz, que vinha de um grupo de mães que não tinham para onde correr e se associavam para se ajudar.” Ali, um de seus projetos de maior visibilidade ganhou corpo: o Banco Comunitário União Sampaio. Com 20 000 reais arrecadados em uma vaquinha virtual, em 2012, o banco passou a oferecer microempréstimos a moradores da região. “Eu era analista de crédito, visitava a casa das pessoas e via que 70% dos pedidos eram para comprar comida”, contabiliza. Para as pessoas nessas condições delicadas, o empréstimo era feito sem juros, na moeda sampaio — lastreada no real, mas válida somente no comércio local. “É um jeito de dar um oxigênio para a pessoa e estimular o consumo dentro da nossa comunidade, movimentar a economia da periferia.”

A dedicação aos movimentos sociais e de transformação das áreas mais marginalizadas da cidade em muitos momentos andou junto com batalhas íntimas. Em 2011, seu irmão mais novo, André, foi morto. “Ele foi fazer um assalto a banco. Ele não estava certo. Mas a polícia deu onze tiros nele. Ele tinha de estar na prisão, não no cemitério”, diz Thiago. “Foi para defender a juventude negra e pobre do extermínio que fizemos o Projeto Redes, que culminou no primeiro Festival Percurso. A gente queria oferecer formação e oportunidade pra chegar primeiro que o fuzil à vida do jovem.” O mesmo sentimento de inconformidade pessoal impulsionou o trabalho coletivo na agência, fundada em 2012 e batizada em homenagem ao poeta pernambucano Solano Trindade (1908-1974). Na 31ª Bienal, de 2014, cujo tema questionava como falar das coisas que não existiam, eles foram convidados a participar dos saraus. A programação incluía exibições de índios guaranis e músicas de terreiros e contou com um manifesto: “Sim! Nós somos a cidade! A periferia, que está em todo lugar, é a arte de toda parte. As culturas tradicionais e periféricas se irmanam para uma união que legitima a ancestralidade e celebra a contemporaneidade, presente em quem sente aquele friozinho na barriga quando o Marco Pezão (cofundador da Cooperifa, que morreu em outubro em decorrência de um câncer) grita: ‘Nóis é ponte e atravessa qualquer rio’”.

Documentário Visionários da Quebrada, de Ana Carolina Martins (Reprodução/Veja SP)

Lançado no ano passado, o documentário Visionários da Quebrada, dirigido por Ana Carolina Martins, busca retratar alguns desses agentes de transformação que atuam hoje em dia. “O Campo Limpo, toda a Zona Sul, é um polo de inovação periférica. É um ecossistema fortalecido, com muitos projetos e lideranças”, argumenta Ana. “O Thiago é como se fosse um tradutor local. Mas, por ser um personagem mais conhecido, preferimos retratar quem ainda era mais invisível. Entrevistamos o Tony Marlon, que empreende o projeto de comunicação e educação Historiorama, no Campo Limpo.” Nascida no Capão Redondo, a cineasta também disponibiliza o filme para sessões gratuitas, como forma de estimular diálogos sobre o tema. “Acredito que as transformações vêm das margens, não podem vir de quem não tem a vivência local”, diz a diretora.

Salão nos fundos da Agência Solano Trindade: cobertura de bioconstrução com bambu (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Polo cultural na área que recebeu 441 000 visitantes só neste ano, o Sesc Campo Limpo pôs em cartaz de junho a setembro a exposição fotográfica Ver/Olhar, de Gal Oppido. Durante dois meses, acompanhado por Suzi Aguiar e Binho Padial, do Sarau do Binho — que também tem presença confirmada no Percurso 2019 —, Oppido andou pela região do Campo Limpo para registrar, com um celular, seus personagens. “Alguns paulistanos ainda não entenderam, mas esse grupo que está se revelando agora diz ‘nossa cidade é essa’ ”, acredita o fotógrafo e músico, um dos fundadores do Grupo Rumo. Na capa do folheto da mostra, atrás de uma janela curiosamente grafitada como uma televisão, aparece segurando uma xicrinha de café Cleonice Maria, a Tia Nice, como é conhecida a mãe de Thiago Vinícius. Hoje, ela é a cozinheira responsável pelo Organicamente Rango, restaurante recém-inaugurado no fundo da agência. No salão, de cobertura de bambu feita com técnicas de bioconstrução e paredes grafitadas, as mesas de plástico são servidas com pratos como nhoque de mandioca e PF de peixe frito (20 reais cada um). “Quero comprar um cilindro de massa de pastel elétrico, mas agora ainda não dá”, pondera Nice. Nos eventos do filho, ela costuma oferecer uma versão diferente de pastel, recheada de pancs. “Com o cilindro, vou poder testar uma massa sem glúten nem lactose, como as pessoas pedem nos eventos.”

Tia Nice e a sua feijoada: versão tradicional e vegetariana, com ingredientes orgânicos (Alexandre Battibugli/Veja SP)

Para cuidar da família, ela trabalhou como empregada doméstica e manicure. Mas foi a boa mão para os temperos que guiou os rumos gastronômicos da família. Nice é quem cuida de uma pequena horta no quintal e seleciona os produtos do Organicamente Armazém, que funciona na garagem desde 2017. “O conceito de deserto alimentar na periferia é muito forte. Conseguimos conversar direto com os produtores de Taboão da Serra e Parelheiros para que eles nos abastecessem antes de seguir para os bairros mais centrais”, completa Thiago. Toda semana rola a feijoada da Tia Nice, que já foi contratada para eventos como a festa de fim de ano do Greenpeace. Na versão tradicional (25 reais o prato, 35 reais a cumbuca média e 50 reais a grande) entram carne ­seca, paio, linguiça calabresa, costelinha e lombo de porco. Mas há também uma opção vegetariana (pelo mesmo preço), feita com abobrinha, cenoura, vagem e cogumelo shimeji. “O segredo é deixar tudo al dente”, entrega Nice.

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Ballet Capão Cidadão em apresentação na 31ª Bienal, em 2014 (Leo Eloy/Divulgação)

O prato é um dos favoritos de Thiago e da esposa, Fernanda Mourão. Eles moram num apartamento perto dali junto com a filhinha Maria Flor, de quase 2 anos, e Martin, o chow­ chow batizado em homenagem a Martin Luther King, ganhador do Prêmio Nobel da Paz. Entre os amigos da família está David Hertz, da ONG Gastromotiva, que oferece cursos de capacitação a quem quer empreender no universo da comida. “Em 2004, conheci o Thiago na Artemisia. Ele me mostrou quem era o jovem da comunidade”, lembra Hertz. “Percebi que era fundamental a Gastromotiva sair das universidades e ir para os territórios. Estamos desenhando há três anos um projeto piloto com a Agência Popular Solano Trindade, que vai sair em 2020.” O momento agora é de captar parceiros para viabilizar a escola — para atender uma turma de 24 pessoas, o investimento previsto é de 56 000 reais. “É um desafio conseguir os profissionais que topem se deslocar até o Campo Limpo para dar aula. Fica mais fácil quando estamos dentro de uma faculdade, mas é preciso levar as inovações para a base da pirâmide, mostrar que a gastronomia pode trazer resultado financeiro e que um prato vegano não tem de ser gourmetizado, pode ser para todos”, completa Hertz. Enquanto a escola não sai do papel, o maior sonho de Thiago é ver o restaurante decolar. “Um dia a gente ainda vai estar no COMER & BEBER da Vejinha”.

Cartaz do festival deste ano: enfoque artístico contra a marginalização (Reprodução/Veja SP)

FESTIVAL PERCURSO 2019

Veja algumas das principais atrações

SÁBADO (14)

PERIFA TALKS

No modelo das palestras TED, o encontro recebe oito conferencistas, entre eles o produtor KondZilla, para abordar assuntos como projetos de negócios, saúde mental, protagonismo feminino e empreendedorismo negro. Rua Batista Crespo, 105, Campo Limpo. Sábado (14), a partir das 10h. Ingressos distribuídos uma hora antes. Grátis.

Festival terá aula de gastronomia da chef Bel Coelho (Nilson/Agência Solano Trindade/Divulgação)

DOMINGO (15)

BEL COELHO

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No restaurante sazonal Clandestino, a chef apresenta sofisticados menus degustação. Para o Percurso, ela prepara uma aula sobre aproveitamento integral dos alimentos. “Se não furarmos a bolha, não vamos conseguir uma sociedade mais igual”, afirma Bel.

Nome forte do rap paulistano, o cantor Rael irá se apresentar no festival (João Wainer/Divulgação)

RAEL

Nome forte do rap paulistano, o cantor, que acaba de lançar Capim-Cidreira, toca no palco principal faixas como Só Ficou o Cheiro e Flor de Aruanda. “Eventos na quebrada são os melhores eventos. As crianças que são fãs também podem ir”, diz Rael. Praça do Campo Limpo. Domingo (15), a partir das 10h. Entrada grátis.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 11 de dezembro de 2019, edição nº 2664.

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