J.R. Guzzo: Doria nunca quis o cargo que pediu aos eleitores
Em vez de um gigante, os paulistanos tiveram Doria — e agora têm esse Bruno Covas, que ninguém sabe quem é
O prefeito João Doria foi-se embora, depois de ficar pouco mais de um ano no cargo em que deveria ter trabalhado quatro, pelo contrato que assinou com os eleitores de São Paulo em outubro de 2016. Ficou na prefeitura um tempo mínimo, e fez o mínimo para melhorar a cidade. Onde ele arrumaria tempo, aliás, para fazer alguma coisa realmente útil, se se demorou tão pouco na cadeira? Parece que não vai deixar saudade, porque relações fugazes não costumam gerar saudade, e se lança numa nova aventura, agora para ser governador de São Paulo. Mas Doria vai deixar, sim senhor, uma questão interessante para a meditação de todos. Quando o Brasil crescer, e tornar-se um lugar melhor do que é, talvez a população consiga exigir das figuras que mandam no país uma mudança de regras que pode ajudar muito a cidade. É simples: o sujeito que se elegesse para um cargo público no Poder Executivo ficaria proibido de sair dali, até o fim do mandato, para se candidatar a qualquer outra coisa. Pediu votos ao eleitorado? Então, se ganhar, que cumpra a promessa que fez de governar a cidade, o estado ou o país. Qual seria o problema? Nenhum.
Se alguém quer construir uma carreira política e buscar cargos mais altos, é preciso, em primeiro lugar, que respeite o mandato para o qual foi eleito. E se não quiser mais, porque cansou etc.? Então renuncie, volte para casa e não encha mais a paciência de ninguém pedindo voto para outro cargo; pelos dez anos seguintes, pelo menos, o indivíduo deveria ficar inelegível. Um Doria, por exemplo: se sair agora, só poderia se candidatar de novo em 2028. Vamos ver, aí, se todo esse povo que planeja ir pulando de cargo em cargo para subir na vida, ao sabor do calendário eleitoral, estaria tão animado assim em ir para a balada. Não se trata, aqui, apenas de uma questão moral de confiança, de “palavra empenhada” ou de “vergonha na cara”, como se diz. Tudo isso conta muito, claro, mas há outras coisas envolvidas. O que está em jogo, na prática, são os interesses materiais dos 12 milhões
de moradores da maior cidade do Brasil. Eles precisam de um mínimo de coerência dos administradores, para começar — e como é possível falar em coerência administrativa se o prefeito assume o cargo já calculando quando vai sair? Como é possível, humanamente, acreditar que pessoas assim estejam interessadas na cidade? É exatamente disso que São Paulo precisa: um executivo que tenha o mesmo interesse que a população no bem-estar do território onde mora, trabalha e vive — e que tenha ideias, uma ideia que seja, para tornar mais cômoda a vida cotidiana das pessoas.
Isso vale, naturalmente, para qualquer cidade do Brasil ou do mundo. Mas aí é que está: São Paulo não é uma cidade qualquer do Brasil ou do mundo. Esse monstro aqui, com toda a sua assustadora vitalidade e a angústia cada vez maior causada por seus problemas, é hoje um lugar que subiu ao primeiro plano das atenções mundiais. São Paulo, já há bom tempo, deixou de ser apenas Brasil. É uma fotografia dramática da charada urbana do planeta Terra no século XXI. Para não encompridar muito o assunto: São Paulo é tarefa para um gigante. Em vez de um gigante, os paulistanos tiveram Doria — e agora têm esse Bruno Covas, que ninguém sabe quem é. Entende de São Paulo o mesmo que entende sobre os anéis de Saturno. Quem votou nele? Quem ele representa? O que ele representa com perfeição, uma vez mais na política brasileira, é a praga do “vice”. Dilma Rousseff nos deu Michel Temer. João Doria dá Bruno Covas aos paulistanos. Qual é o nexo que faz uma coisa dessas, considerando o que foi dito logo acima? A cidade de São Paulo, com um PIB de 650 bilhões de reais, equivalente ao de Portugal inteiro, está entre a meia dúzia de lugares mais relevantes da humanidade como ela é hoje. Mas, em vez de se tornar uma prioridade estratégica na vida pública brasileira, um centro onde o Brasil deveria estar tentando construir o seu futuro, é apenas um trampolim para construir o futuro de políticos com ambições geralmente maiores que os seus talentos. Ninguém tem o menor interesse em pensar, realmente, na cidade. Ninguém tem a coragem de lidar com ideias novas, criativas e eficazes para melhorar São Paulo de maneira séria, coerente e duradoura. Tampouco tem capacidade mental para isso. As pessoas não têm noção de nada.
O paulistano precisa de uma cidade que faça parte, em igualdade de condições, da massa de progresso tecnológico que faz mover o mundo de hoje. Ela tem de estar inserida no universo digital da mesma maneira que estão Nova York, Tóquio ou Sydney. Precisa pensar num futuro com muito menos espaço para veículos. Ela deveria ter uma universidade, pelo menos uma, que estivesse entre as vinte melhores do mundo. Precisaria, com urgência, eliminar radicalmente os impostos em áreas como a zona central — a única forma de salvar um valioso espaço urbano que produz uma fração mínima do que poderia estar produzindo. Como qualquer cidade grande com alguma inteligência, São Paulo já deveria, há anos, estar entre as
maiores competidoras do mundo em investimentos privados. São eles que darão vida à cidade e trabalho aos seus moradores — e não as repartições
públicas do município. Os administradores deveriam aprender, após quatro séculos, como se melhora uma cidade sem a utilização maciça de dinheiro público — algo que, por sinal, a prefeitura não tem. E por aí se vai. É tudo bem mais simples do que prefeitos, vereadores e seus burocratas dizem. Mas o que adianta falar? Este parágrafo poderia ter sido escrito em latim; eles não entenderiam nada do mesmo jeito.
João Doria foi escolhido num momento em que os eleitores de São Paulo queriam desesperadamente alguém como ele — ou, pelo menos, parecido com a propaganda que ele fazia de si próprio. Doria teve uma vitória espetacular, talvez a maior na história das eleições paulistanas: 3 milhões de votos, já no primeiro turno. Mostrou-se também um guerreiro. Enfrentou a hostilidade, e frequentemente um ódio que chegava a ser cômico, da maioria dos jornalistas e dos meios de comunicação. Sua eleição foi durante muito tempo dada como impossível pelas “pesquisas eleitorais”. Todo santo dia a sua candidatura entrava em crise. Mas a mídia brasileira, incluindo a paulistana, tem um instinto infalível para ficar do lado errado da opinião pública; sempre quer o que a grande maioria da população não quer. Gosta, por exemplo, da Cracolândia, do “morador de rua”, do mendigo etc. O paulistano não gosta de nada disso. Nas eleições de 2016, justamente, estava exasperado com uma prefeitura e um prefeito que insistiam em governar a cidade na direção contrária à do seu entendimento. Fernando Haddad, a quem Doria venceu, era uma espécie de adversário de sonho. Haddad parece ser, por tudo o que se sabe, um tremendo boa-praça. Mas como prefeito foi um filme-catástrofe do começo ao fim. O que havia de errado com ele? Tudo, basicamente.
Haddad e sua equipe de cientistas sociais, urbanistas alternativos, arquitetos sem obras e militantes de “movimentos sociais” que querem fazer a revolução socialista queimando pneus na rua e recebendo verbas da prefeitura montaram em São Paulo uma espécie de tempestade perfeita em matéria de decisões ruins. Para simplificar: se fosse hoje, estariam todos a favor da extinção da PM para acabar com a criminalidade. (“Tem de acabar / A Polícia Militar”). Ninguém está dizendo, pelo amor de Deus, que Haddad seja a favor de uma demência dessas; mas o seu mundo é. A verdade é que o ex-prefeito só existe nesse bioma — um sistema psicológico e político que acha certo dar mesada a viciados em crack, eliminar os automóveis da cidade criando ciclovias, apoiar pichadores de parede, inclusive com dinheiro, por eles representarem a “cultura popular” e assim por diante. Era tudo o que Doria precisava para ganhar as eleições como ganhou.
O problema, na vida real, é que Doria nunca quis o cargo que pediu aos eleitores. Queria ser presidente da República, governador do estado, provedor da Santa Casa — qualquer coisa, menos prefeito de São Paulo. O resultado é que a cidade ficou sem Haddad e sem Doria. Bacana isso. Estamos, agora, perdidos na noite escura.
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