Taipa de pilão ganha fôlego com casas reformadas e novas construções
Enquanto raríssimos exemplares existentes na capital desde o século XVI são reformados, empresa aposta na técnica em construções modernas
Iniciativas capitaneadas pelos setores público e privado estão empenhadas em resgatar a memória da arquitetura colonial paulista. Trata-se de reformas de três edificações em taipa de pilão, a ancestral técnica para erguer paredes a partir de terra socada, madeira e argila, num fazer construtivo que predominou nas casas levantadas a partir o século XVI.
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Se esse era o modelo de construção que se perpetuou até o século XVIII, de acordo com a pesquisadora Luana Saito, hoje, não restam mais de cinquenta exemplares em toda a capital, segundo estimavas dos especialistas.
Orçado em 5,7 milhões de reais com a maior parte desses recursos vinda dos cofres públicos (4,9 milhões de reais), o trio de reformas teve início com o Sítio da Ressaca, no Jabaquara. Além das paredes em taipa de pilão, o restauro inclui o reforço na fundação, nova cobertura, recuperação das chamadas esquadrias (portas e janelas de madeira), revestimento das paredes e drenagem ao redor da edificação.
As intervenções, previstas para estar concluídas em dezembro deste ano, têm custo de 1,47 milhão de reais. A mais onerosa e demorada delas, com investimento de 3,5 milhões de reais e data de entrega no fim de 2023, é a do Sítio Mirim, em São Miguel Paulista, no extremo da Zona Leste, atualmente em ruínas. Praticamente tudo terá de ser recuperado: paredes, cobertura, portas, janelas e o tratamento paisagístico do entorno.
Esses dois exemplares integram um seleto grupo de doze casas bandeiristas, construídas como habitações amplas e algumas até assobradadas, consideradas os maiores tesouros da arquitetura colonial de São Paulo. A riqueza dessas habitações não reside no fato de elas terem sobrevivido durante séculos, mas também por ambientar o modo de vida da capital nos seus primórdios.
O terceiro restauro é de uma pequena casa, de 58 metros quadrados, no Parque Burle Marx. Diferentemente das demais, foi alvo de renovações ao longo dos anos com outros materiais como pilares de concreto e aço, que acabaram por descaracterizá-la. Atualmente, o imóvel encontra-se degradado e as paredes são escoradas por madeiras para não vir abaixo. Uma lona foi colocada sobre a estrutura para evitar que a chuva venha a deteriorá-la ainda mais.
Quem banca esse projeto é o Parque Global, megaempreendimento imobiliário que investirá 800 000 reais para novamente pôr a edificação de pé. No espaço, a proposta é promover exposições e pequenos eventos. A reforma, porém, ainda depende da análise da prefeitura, que avalia os documentos encaminhados pelos entusiastas da recuperação.
Essa não é a primeira iniciativa do gênero bancada pelo setor privado. O Grupo Victor Malzoni, em 2007, recuperou a Casa Bandeirista do Itaim, um imóvel do século XVIII tombado pelo patrimônio histórico. A reforma foi entregue em 2011 e, desde então, o amplo espaço, um casarão com nove cômodos que inclui até uma bela capela, é aberto ao público para visitação.
A maior parte das casas bandeiristas — é preciso que fique claro que apesar da designação adotada nem todas foram necessariamente erguidas ou mesmo habitadas por bandeirantes — está nas mãos do poder público. Em geral, esses espaços são ocupados por museus, como ocorre, por exemplo, na Casa do Bandeirante, sede do Museu da Cidade de São Paulo, no Butantã, no Sítio Morrinhos, no Jardim São Bento, e na Casa do Tatuapé.
“São casas com paredes largas, de 50 centímetros e apiloadas. Apesar de serem só de terra, são sólidas, tem bom desempenho térmico e beirais largos”, explica a arquiteta Lia Mayumi, do núcleo de projeto, restauro e conservação da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. E completa: “Apesar de terem um valor histórico enorme, são construções muito singelas, com linhas retas”.
Essa sobriedade é um reflexo do método construtivo. As casas eram de linhas retas, e o telhado de barro avançava formando um beiral para evitar danos à estrutura. Algumas tinham mais de um pavimento, um arrojo, tendo em vista a forma como eram feitas. Com a ação do tempo e a introdução de novos métodos construtivos, quase tudo virou poeira. As poucas sobreviventes são tombadas.
A reportagem da Vejinha esteve em duas dessas casas, no Butantã e no Tatuapé, e constatou que ambas estão em perfeitas condições. “É curioso como é simples e bela ao mesmo tempo. E geladinha por dentro”, diz a estudante de artes Maria Laura Pereira, 22, no Tatuapé.
Autora do livro Taipa, Canela-Preta e Concreto: um Estudo sobre a Restauração de Casas Bandeiristas em São Paulo (Romano Guerra, 2008, 320 págs., R$ 62,90), Lia conta que não são só esses os imóveis que adotam o modelo construtivo, mas outros que foram alterados em reformas com a inclusão de técnicas mais recentes.
É o caso de edifícios religiosos, entre eles a Capela de São Miguel Paulista, na Zona Leste, o Mosteiro da Luz, na Luz, a Capela dos Aflitos, na Liberdade, além das igrejas da Boa Morte e de São Gonçalo, na região da Sé. Na lista, entram ainda o Solar da Marquesa e Casa Nº 1, no centro histórico. Felizmente, todas essas construções atravessaram séculos e continuam de pé.
TÉCNICA REVISITADA
Seja por interesse histórico ou visando construções mais sustentáveis, a antiga técnica de terra socada vem ganhando mais adeptos na arquitetura moderna. Márcio Vieira Hoffmann, 51, mestre em restauro e proprietário da Taipal, especializada na técnica, explica que o método secular ganhou uma forcinha dos novos recursos.
“Fazemos exatamente da mesma maneira. A diferença é que o taipeiro usava o braço para bater a terra e, hoje, posso usar um pilão pneumático. Antes era utilizada a terra disponível e agora fazemos ensaios em laboratório para encontrar a melhor densidade da terra a ser usada e agregar alguns elementos”, explica.
A aceitação da taipa de pilão para novos projetos é tal que em janeiro deste ano a ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas) criou uma diretriz a respeito, documento de que Hoffmann é coautor.
A Taipal é a responsável, por exemplo, por levantar as paredes de uma casa autossustentável de 702 metros quadrados em Santo Antônio do Pinhal, cidade na Serra da Mantiqueira. O projeto leva a assinatura do arquiteto Gui Paoliello.
“É interessante essa revisitação, já que se aproveita a terra das próprias fundações”, diz Hoffmann.
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Publicado em VEJA São Paulo de 25 de maio de 2022, edição nº 2790