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A história e os planos do Edifício Martinelli, que completou 90 anos

Após servir de moradia para seu idealizador, Giuseppe Martinelli, o primeiro arranha-céu de São Paulo abrigou hotel, cinema e boate

Por Tatiane de Assis Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 1 ago 2019, 10h39 - Publicado em 7 jun 2019, 06h00

Erguido a partir de 1925, o edifício Martinelli completou noventa anos em maio deste ano. O espigão de cor rosa que leva o sobrenome de um empresário italiano chamado Giuseppe foi o primeiro arranha-céu de São Paulo e tornou-se marco de sua verticalização. Seus trinta andares, distribuídos em 130 metros de altura, geraram deslumbramento quando a paisagem paulistana era dominada por casas e prédios com até quatro andares. Apenas um outro (o Sampaio Moreira) tinha mais de dez andares. O medo também apareceu, já que a população temia que a estrutura grandiosa, de concreto armado, não ficasse firme no terreno úmido do Vale do Anhangabaú. Em meio às críticas, o prédio foi inaugurado em 1929. Sua imponência original foi seguida de episódios de glória e outros de abandono. Confira a seguir o desenrolar da história desse ícone do centro.

Construção do Edifício Martinelli, no centro de São Paulo (Acervo MIS/Divulgação)

ESPIGÃO COMPETITIVO

À época em que foi construído, o Martinelli tinha poucos concorrentes. Perto de uma de suas entradas, no número 346 da Rua Líbero Badaró, estava o edifício Sampaio Moreira, com seus recatados catorze andares e 50 metros de altura. A briga ficava mais acirrada em relação ao Rio de Janeiro, com a finalização em 1930 do prédio Joseph Gire, mais conhecido como A Noite. O então gigantão carioca tinha vinte e dois andares e 102 metros de altura.

Giuseppe Martinelli foi o idealizador do edifício (Samuel Lavelberg/Divulgação)

O DONO DE UM SONHO

Depois de fazer fortuna no Brasil, Giuseppe Martinelli, que era de uma cidade da Toscana, queria deixar uma marca na história do país. Construir um túmulo grandioso, tal qual faziam os ricaços da época, parecia-lhe modesto, então ele preferiu erguer um prédio monumental. Graças a uma mistura estranha que incluía vidro moído, pó de mica, cristal e cimento, a fachada ganhou uma coloração levemente rosa e brilhante, que encantou São Paulo.

SEM BOLO NEM VELA

O espigão não teve uma inauguração oficial quando o grosso das obras acabou, em 1929. Um dos prováveis motivos foi a não ocupação de muitas de suas dependências. A demora em completar a tarefa era justificável, já que o prédio era enorme: tinha sessenta salões, 960 salas e 247 apartamentos.

MUDANÇAS NO PROJETO

O primeiro e o segundo projetos, assinados pelo húngaro William Fillinger (1888-1968), previam que a construção teria doze e catorze pisos, respectivamente. Com o andar da carruagem, chegou-se a 25 e, por fim, o sonho alcançou os trinta andares. A monumentalidade se completava com o acabamento luxuoso dos interiores. Segundo o livro O Prédio Martinelli: Ascensão do Imigrante e a Verticalização de São Paulo, noventa artesãos ficaram encarregados dessa tarefa. Eles foram responsáveis pela criação de ornamentos e molduras de gesso. O deslumbre vinha de espelhos belgas, paredes revestidas de mármore de Carrara e sanitários da Inglaterra. Como se tudo isso não fosse suficiente, havia ainda esquadrias e portas de pinho-de-riga, nome popular de uma madeira nobre oriunda do Leste Europeu. Desse tempo áureo, ainda resta uma escada de ferro, localizada no 29º andar.

Vista da cobertura: público pode visitar o espaço (Sergio Berezovisky/Divulgação)

COBERTURA

Nos últimos cinco pavimentos do Martinelli, seu dono construiu uma espécie de palacete, onde viveu a partir de 1929, com a família. Ele o acessava por dois elevadores — um, todo espelhado, foi apelidado de Princesa. Das varandas e terraços, avistava o Pico do Jaraguá e a Serra da Cantareira. Entre os convidados ilustres que recepcionou ali estiveram Júlio Prestes (1882-1946) e o príncipe de Gales, futuro rei Eduardo VIII (1894-1972).

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“O mais luxuoso cinema no mais alto edifício da América do Sul”: chamada no jornal (Estadão Conteúdo/Estadão Conteúdo)

CINE ROSÁRIO

Na área onde hoje está localizada uma agência da Caixa Econômica Federal, na Rua São Bento, ficava o Cine Rosário. A pompa que faltou na abertura do Martinelli sobrou na inauguração do cinema, em 2 de setembro de 1929, que contou com a presença do prefeito José Pires do Rio (1880-1950) e concerto do maestro Gabriel Migliori (1909-1975). Na telona, o público, composto de representantes da elite paulistana, assistiu ao filme americano O Pagão (1929). Uma curiosidade um tanto estranha na ocasião: as poltronas de couro, que naquela época eram uma novidade em salas de cinema, foram retalhadas. Diante do ato de vandalismo, não houve outra solução senão refazê-las.

HOTEL SÃO BENTO

Antepassado do Othon Palace, o Hotel São Bento tinha sessenta apartamentos e ocupava sete andares. Seu público era de homens de negócios, dispostos a pagar diárias de 15 000 a 35 000 réis, o que equivale hoje a cerca de 1 845 a 4 305 reais.

Zeppelin Graf contornou o prédio: marco (Reprodução/Veja SP)

SÍMBOLO PAULISTANO

Em 1933, o edifício ganhou mais uma anedota ao ser contornado pelo Zeppelin Graf, que é uma espécie de antepassado do avião. Anos depois, o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) fotografou a construção e falou de seu impacto na paisagem: “Em 1935, o Martinelli era, ao mesmo tempo, uma referência (para se localizar no centro) e um símbolo”.

O COMEÇO DA DECADÊNCIA

Os altos custos da construção fizeram Giuseppe Martinelli gastar seu dinheiro acumulado e ainda pedir empréstimos. Não se sabe ao certo a data, mas entre 1934 e 1937 ele vendeu seu sonho ao governo italiano e se mudou para o Rio de Janeiro. Segundo sua neta, a artista plástica Maria Bonomi, quando voltava à capital paulista, ele evitava trafegar perto de lá e dizia aos taxistas: “Não me passe pela Líbero Badaró”. Em 1943, um ano depois de o Brasil declarar guerra ao Eixo (a aliança formada por italianos, japoneses e alemães), o edifício foi confiscado pelo governo nacional, sob justificativa de dívida de guerra.

Baile de black music no Club 220 (Divulgação/Divulgação)

FESTAS E MUSEUS NO ESPIGÃO

Depois que Martinelli se mudou, parte de seu palacete passou a abrigar a casa noturna Night and Day. Nos anos 60 e 70, o agito aumenta com a instalação do Club 220, especializado em bailes de black music. Em 1981, depois da desapropriação do prédio pela prefeitura, ele tornou-se sede do Museu da Cidade. A placa da solenidade ainda está lá.

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UMA VIDA MENOS POMPOSA

Sob a jurisdição federal, o vazio das dependências continuou. A pompa também diminuiu com o fim do Cine Rosário, nos anos 40. Uma nova esperança surge quando um consórcio, que tinha o Banco da América como um dos integrantes, compra o prédio em um leilão em 1944. A partir dali, o Martinelli se tornaria um condomínio com 103 proprietários, que não conseguiram evitar sua degradação.

LADEIRA ABAIXO

A partir dos anos 50, as dependências do Martinelli são ocupadas de forma irregular por famílias de baixa renda, que transformam o espaço em um cortiço, que chegou a abrigar cerca de 500 pessoas. Segundo pesquisas da arquiteta Nadia Somekh, que estudou o prédio desde a sua graduação até o doutorado, além de tê-lo visitado nos anos 70, o fosso dos elevadores virou depósito de lixo. Um deles chegou até a servir de moradia para um casal.

CONCRETO FÚNEBRE

Nos anos de penúria, a história do espigão foi pontuada por mortes misteriosas: as investigações não sabiam precisar se eram casos de homicídio ou suicídio. No rol trágico de quedas de grandes alturas, entram o garoto Davilson Gelisek, violentado e atirado morto no fosso do elevador aos 14 anos, a jovem Rosa dos Santos, de 17 anos, e Neide Rosa Souza, que não teve sua idade revelada no noticiário da época.

Brigadeiro Eduardo Gomes em discurso dentro do edifício, em 1950 (Arquivo/ Estadão Conteúdo/Estadão Conteúdo)

PARTIDOS POLÍTICOS

O prédio abrigou grupos políticos de diferentes orientações. Um deles foi o Partido Comunista, que, antes de ser posto na ilegalidade, teria dividido o mesmo piso com seu oponente, a Ação Integralista Brasileira. Também passou por lá a União Democrática Nacional. Nas suas dependências, em 1950, o brigadeiro Eduardo Gomes fez um discurso.

DESOCUPAÇÃO NOS ANOS 70

Em 1975, a prefeitura, então comandada por Olavo Setubal (1923-2008), permitiu, por meio da lei nº 8255, de 26 de maio, a intervenção no prédio pela Empresa Municipal de Urbanização (Emurb). Até 1977, as ações tinham como foco a negociação com os proprietários particulares e moradores irregulares. Somente após a aquisição das instalações as obras de restauro foram iniciadas. Depois da realização de uma desinfecção, os sistemas elétrico e hidráulico foram trocados. Também foram instalados equipamentos de segurança para prevenção de incêndio. A ampla escada que ligava as saídas da Avenida São João e da Rua São Bento foi retirada. A última intervenção grande de restauro foi em 2008, na cobertura, mas ainda há muito a ser feito. Os tapetes cinza das salas e dos quartos do palacete estão mofados e portas e esquadrias estão em mau estado.

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O edifício também apareceu na cédula de 500 000 cruzeiros (Jacques Lepine/Estadão Conteúdo)

MEMÓRIA PAULISTANA

Apesar do vaivém de sua história, o Martinelli segue firme na memória da cidade e do Brasil. No início dos anos 90, ele apareceu, junto com o escritor Mário de Andrade, em uma cédula de 500 000 cruzeiros.

LEMBRANÇAS TINTEIRAS

Na cabeça e no coração do paulista Sebastião Martins Vieira, 78, o prédio também tem espaço garantido. Vieira se tornou seu íntimo quando começou a trabalhar, aos 13 anos, como office-boy na Ravil Canetas, uma das lojas do térreo. Era maio de 1954. Pouco mais de trinta anos depois, ele virou proprietário do estabelecimento, que comercializa itens com valor entre 2 e 20 000 reais. “Temos para todos os gostos e bolsos”, dispara o vendedor de respostas ácidas mas de sorriso fácil. Com agilidade, Vieira sobe e desce a ladeira da São João para mostrar uma porta original da construção, instalada em um pequeno café, e também indica degraus da época. Antes de voltar para o seu mundo de canetas e tintas, pede que a importância do Martinelli seja exaltada. “Ele é, para a gente, o que o Empire State é para os Estados Unidos”, defende, emocionado, com os olhos brilhando.

UMA PAUSA NO MEIO DA CORRERIA

Também no térreo, mas próximo à entrada da Rua São Bento, está o Café Martinelli, que abriu as portas em 1993. Com mesas vindas de um leilão do Jockey Clube do Rio de Janeiro, ele tem um clima nostálgico, com balcão de madeira e fotos em preto e branco. Sua primeira dona gabava-se de ter tido clientes ilustres, como Henrique Meirelles, secretário de Fazenda de São Paulo, então no comando do Bank Boston. “Devo ter tomado um café lá, mas frequentador, de sentar e passar tempo, eu não era”, explica Meirelles. Sua atual proprietária, Cristiane Ganan, 42, afirma que o movimento de habitués, especialmente fãs de suas quiches, continua intenso.

VISTA DE 360 GRAUS

Em 2017, as visitas ao terraço foram interrompidas, devido a casos de suicídio. Elas voltaram em abril deste ano. Em cada um dos oito horários oferecidos, são formadas turmas com quinze participantes, que recebem informações sobre a construção durante quarenta minutos. “É o mirante mais democrático da cidade, já que não é preciso pagar, ao contrário do que ocorre no Edifício Itália e no Farol Santander”, pontua Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.

SORRISOS E BUROCRACIA

Fora os visitantes, o Martinelli recebe diariamente mais de 3 000 funcionários públicos que trabalham por lá, distribuídos em 21 andares e seis órgãos, pastas e empresas, entre eles a SP Urbanismo, a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab SP) e a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (SMDU). Encontra-se ainda, nos seis primeiros pisos, a sede do Sindicato dos Bancários. Além disso, há os lojistas, na parte externa. Quem cuida da turma toda e do condomínio atualmente é o síndico Valdemir Lodron.

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Bar-balada da Heineken, no topo do prédio, em 2015 (Carol Krieger/Divulgação)

FESTAS NO TOPO E UM NOVO FUTURO

De janeiro a março de 2015, o evento Heineken Up on the Roof promoveu festas gratuitas para mais de 8 000 pessoas no terraço. Foi como uma pista luminosa para o futuro. Neste ano, a prefeitura lançou uma consulta pública para ouvir a população quanto à cessão para a iniciativa privada de alguns andares (25º, 26º e 27º do prédio, além de uma das lojas do térreo). O lançamento do edital deve acontecer em agosto e a arrastada concessão do espaço vazio deve estar relacionada às áreas de lazer, memória e alimentação.

> Visitas guiadas pelo Prédio Martinelli. Avenida São João, 35, centro. Segunda a domingo, 11h, 12h, 13h, 14h30, 15h30, 16h30, 17h30 e 18h30. As inscrições devem ser feitas trinta minutos antes. Grátis.

Publicado em VEJA SÃO PAULO de 12 de junho de 2019, edição nº 2638.

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