A história da carroceira que invadiu casa em bairro nobre e virou filme
Elismaura dos Santos é mãe de sete filhos e ouve queixas por obstrução da calçada com material reciclável; prefeitura a chamou de "acumuladora compulsiva"
A ocupação de uma casa na Rua Gararu, na Vila Nova Conceição, chama atenção pela grande quantidade de materiais e objetos velhos espalhados pela calçada e por parte da estreita via. Há dois anos, após inúmeras reclamações de vizinhos, a prefeitura entrou com uma ação na Justiça contra a moradora do local, a carroceira Elismaura Pereira dos Santos, 45, que vive no imóvel faz mais de vinte anos com cinco de seus sete filhos. A história dela foi contada na reportagem de capa da Vejinha desta semana.
Como só pode atuar da porta para fora, a gestão municipal pediu autorização ao juiz para limpar o imóvel, pois havia indícios de que a mulher fosse uma acumuladora compulsiva de lixo. “Em uma visita foi possível observar o agravamento da situação de acúmulo e a ausência de crítica da senhora Elismaura quanto à exposição de sua família ao contato com aqueles materiais”, escreveu a prefeitura à época.
“Não sou acumuladora coisa nenhuma. Faço o meu trabalho, meus filhos me ajudam e estão todos na escola. Inclusive um que tem necessidades especiais me auxilia graças a uma bicicleta adaptada”, diz a catadora, cuja história virou filme. Dirigido pelo editor de vídeo Gustavo Pera, o curta-metragem Carroça 21 ficou pronto há dois anos e foi exibido em festivais no Brasil e em países como França, Alemanha e Estados Unidos. “A ideia era fazer um documentário jornalístico, mas produzimos algo mais pessoal. Mergulhamos na vida particular da Elismaura, sua relação com a cidade, com seus filhos, dos filhos com a sociedade. É uma trajetória fantástica”, afirma Pera.
A expectativa é continuar com as exibições em centros culturais e espaços periféricos da capital. O numeral que completa o nome do filme é uma alusão ao século atual. Hoje, Maura, como é conhecida, pega materiais reciclados via aplicativo Cataki. “Sou uma catadora do século 21. Cresci na rua, sou uma menina de rua, mas eu reciclo vidas. Graças ao trabalho de pessoas como eu, os nossos filhos vão poder respirar um ar mais limpo. Quem me julga é porque não conhece minha história.”. Os próximos objetivos da catadora-artista são terminar um curso de teatro e resolver a questão legal da casa (ela pretende ingressar com uma ação de usucapião, mas afirma: “Não tenho dinheiro para pagar advogado”).
Outra meta é encontrar um local para poder separar os materiais que coleta e desobstruir a calçada. “Preciso de um espaço para trabalhar. Poderia ser debaixo de uma ponte, sem atrapalhar ninguém. Faria até um jardinzinho e uma ala para ensinar as pessoas a reciclar. Não é porque eu não tenho estudo que não sou inteligente”, argumenta. No dia em que conversou com a Vejinha, em 18 de fevereiro, ela havia faturado 50 reais com seu trabalho. “Com mais 50 reais de ontem, juntamos 100 e compramos um botijão de gás, que havia acabado na semana passada.”
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 4 de março de 2020, edição nº 2676.