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Por Arnaldo Lorençato
O editor-executivo Arnaldo Lorençato é crítico de restaurantes há mais de 30 anos. De 1992 para cá, fez mais de 16 000 avaliações. Também é autor do Cozinha do Lorençato, um podcast de gastronomia, e do Lorençato em Casa, programa de receitas em vídeo. O jornalista é professor-doutor e leciona na Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Memória: Mari Hirata (1959-2021), a cozinheira que traduziu o Japão

Uma amiga querida, a chef e jornalista estava radicada em Tóquio onde se dedicava a aula de culinárias e passeios gastronômicos pelo país do Oriente

Por Arnaldo Lorençato Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 20 jan 2022, 14h06 - Publicado em 30 Maio 2021, 19h35

Com uma risada deliciosa, Mari Hirata era uma pessoa cativante, das mais cativantes que conheci. Não sei como demorei tanto para ficar amigo dela, coisa que aconteceu pouco mais de duas décadas atrás. Mari partiu nesta madrugada em Tóquio aos 61 anos. Nove meses atrás, ela descobriu um câncer no pâncreas que abreviou sua vida. Tive a felicidade e o prazer de estar com essa querida em janeiro de 2020. Foi minha última viagem internacional. Passei um mês no Japão e visitar a Mari era obrigatório.

Nosso encontro foi pela manhã de um inverno brando. Começaria com uma visita ao antigo mercado Tsukiji, no centro da capital japonesa. Marcamos às 9h na saída A1 da Estação Tsukiji da linha Oeda. Lá estava ela radiante. Ainda não havia sido decretada a pandemia. Era uma época que amigos podiam se cumprimentar efusivamente, de beijo e abraço permitidos.

Mesa com pescados e vegetais in natura comprados no mercado Tsukiji
Ingredientes comprados no antigo Mercado Tsuskiji: banquete (Arnaldo Lorençato/Veja SP)

Logo depois das compras, iríamos para a casa dela. Teria o privilégio de desfrutar de um almoço preparado por uma das melhores cozinheiras que já conheci, uma mulher capaz de transformar o trivial em iguaria. O passeio entre as bancas do mercado foi um aprendizado. Que horas magníficas aquelas. Sem empáfia enquanto passeávamos entre as bancas com vendedores, que eram seus velhos conhecidos, Mari ia derramando conhecimentos com uma generosidade comovente – a melhor anfitriã que um brasileiro poderia ter no Japão, uma tradutora fascinante entre Ocidente e Oriente.

“Olha ali, tem aquele tomate cascudo. Cresce sem água. Vamos levar também esse caranguejo peludo, mas a fêmea que tem mais carne”, explicava. “Vamos provar também essas favas verdes grandes chamadas de soramame. Provavelmente, você já provou as gônadas de bacalhau, que são mais baratas. Vamos levar de fugu.” Embora o fugu ou baiacu seja um peixe venenoso e mortal, Mari sabia quem era o peixeiro autorizado. Assim foi feito.

Caranguejo fêmea num prato
Caranguejo: preparação no vapor (Arnaldo Lorençato/Veja SP)

Retornamos ao metrô e fomos direto para o apartamento dela na Grande Tóquio, instalado numa vizinhança agradável e tranquila. O marido, Hisao, um dos confeiteiros-chefs da requintada confeitaria Toraya, infelizmente estava no trabalho. Mari ligou a TV para me apresentar um crítico de gastronomia que tinha um divertido programa naquele horário.

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Mas quem disse que prestei atenção no tal crítico? Não consegui tirar os olhos dela em sua pequena cozinha e no banquete que produzia com maestria e grande rapidez. O tomate doce, previamente descascado, virou uma entrada das mais saborosas. Foi seguido das favas verdes e grandalhonas grelhadas.

Mari tinha um saquê de safra muito recente e geladinho para acompanhar. Em seguida, com velocidade extraordinária, transformou em tempurá o fukinoto, um vegetal das montanhas de cor verde clarinha mais comum na primavera e que deve ser comido pouco antes de suas flores abrirem. Foi transformado por Mari em tempurá como um véu delicado de farinha. O gosto entre o ácido e o amargo não sai da memória.

Tempurá de vegetais como o fukinoto, que não existe no Brasil
Tempurá: vegetais como fukinoto que não existe no Brasil (Arnaldo Lorençato/Veja SP)

A mesma técnica foi usada para elaborar as gônadas do fugu. Que sabor extraordinário e que textura única! Em seguida, transformou a soberba cavalinha em sashimi como também numa uma versão grelhada. Houve ainda uma lula gigante. Se tudo tinha sido excelente, ainda faltava um prato excepcional. A caranguejo fêmea foi parar na panela e preparada no vapor. Mari tomou absoluto cuidado com o saco na boca crustáceo, que retém areia, já que retirou um creme riquíssimo que fica sob a carapaça. Depois, quebrou delicadamente as patas da bichinha, de onde saiu uma carne absolutamente fabulosa.

De sobremesa, apareceram as frutas frescas que pareciam joias: um caqui duro e shine muscat, uvas desenvolvidas no Japão de bagos gordotos sob a casca verde, tentadoramente doce e com uma textura firme. Esse foi o Japão culinário que minha amiga Mari apresentou. Conversamos até uma 4 da tarde e parti. Foi a última vez que a vi.

Conheci Mari Hirata 21 anos atrás, quando era editor no caderno de cultura da extinta Gazeta Mercantil. Numa tarde, fui ao apartamento de um dos irmãos dela encontrá-la por sugestão de amigos. Numa época em que a panificação se resumia a pão francês, ciabatta era quase que um palavrão e as misturas prontas intragáveis que padronizaram as padarias estavam engatinhando, ela tinha feito pães que eram obras de arte tanto no sabor quanto no desenho. Dava pena de cortá-los, mas os saboreei com muito gosto.

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Havia ainda um cheiro doce espalhado pelo apartamento. Era das sobremesas com frutas que ela havia preparado para o jantar. Explica-se. Mari, que se formou em jornalismo, ingressou no mundo da alta gastronomia ao se mudar para Tóquio, onde trabalhou na Toraya, a mais sofisticada confeitaria e casa de chá de Tóquio e uma das melhores do mundo, localizada em frente ao palácio real japonês. Foi lá também que conheceu o marido e, com Hisao, se transferiu-se para Paris, onde foi ele chef da então novíssima filial da Toraya. Noutra vez, nos encontramos para um café na casa da mãe dela, dona Cecília, já falecida e mulher do deputado João Sussumo Hirata.

Desde que nos aproximamos, quando Mari vinha ao Brasil, quase sempre nos encontrávamos. Lembro de termos ido a um restaurante de proprietários japoneses que faziam traíra. Mari, que adorava partilhar seus conhecimentos sobre gastronomia, discorreu sobre a importância da fritura para ocultar o sabor de barro característicos dos pescados de rio. Só quem pôde conhecê-la entende a felicidade que era dividir a mesa com ela.

Era uma mestra e gostava de ensinar. Com frequência dava aulas e ciceroneava grupos de brasileiros abastados em andanças gastronômicas pelo Japão. Além de ter mantido uma coluna por alguns anos na Folha de S.Paulo, publicou dois livros Minhas Receitas Japonesas (Publifolha, R$ 301,24, 192 pág.) e Mari Hirata Sensei (BEĨ, R$ 120, 280 pág.), em parceria com a ex-aluna Haydée Belda e que acaba de ganhar a primeira reimpressão.

Mari morreu em casa neste domingo (30). Estavam com ela o marido Hisao e os filhos Shojei e Anna.

Publicado em VEJA São Paulo de 09 de junho de 2021, edição nº 2741

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