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A viagem do beijo

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 18h11 - Publicado em 9 abr 2011, 00h50

Gosto da ideia de que o beijo se espalhou pelo mundo na rota do cristianismo. A partir de costumes dos antigos judeus, gregos e romanos, costumes que se encontraram, se intercambiaram e se difundiram no Mediterrâneo, o beijo foi ganhando lentamente a Europa, a Ásia Menor, os mundos novos conquistados.

Os bárbaros europeus do leste e do norte, os aborígines do Atlântico Sul, do Índico e do Pacífico, os nativos das três Américas, os africanos — nenhum desses povos tinha o hábito do beijo, fosse como cumprimento social, fosse como gesto amoroso. A novidade espalhou-se por onde se espalharam a cultura mediterrânea e o cristianismo.

Ainda hoje há povos sem beijo: nossos índios do mato fechado (não os aculturados), os lepchas do Himalaia, pigmeus das ilhas ao sul da Índia, vietnamitas, somalianos, tribos de bantos da África Central, povos asiáticos nos escondidos do mundo — mas, aonde chegaram os costumes dos povos cristianizados, chegou o beijo.

Em diversas regiões do globo, havia agrados ligeiramente parecidos com o beijo, como cheiradinhas pelo rosto e esfregadinhas de nariz, não o boca a boca; lentamente, ele foi conquistando territórios cada vez mais longínquos.

No Japão, raros beijos em gravuras do século XIX mostram que os amantes mais escolados se beijavam entre quatro paredes de bambu, mas não havia o costume, e me garantem que os japoneses só ganharam uma palavra única para designar o beijo (kissu, que veio do inglês kiss) após a II Guerra Mundial e a ocupação americana. Nessa longa viagem pelo tempo e pela geografia, o beijo amoroso nunca teve, como agora, tanta liberdade e visibilidade. As artes e os meios visuais funcionaram como propaganda.

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Não se busca mais o escondidinho próprio para o beijo, como eram o portão pouco iluminado das casas, a varanda, o carro, os bancos mais discretos da pracinha, o escurinho do cinema — porque os portões se tornaram grades de fortalezas, não há varandas senão para churrasco, carro parado em rua deserta é um perigo, praças foram tomadas por mendigos, cinema é para pipoca.

Não há lugares próprios justamente porque todo lugar se tornou próprio, e nada parece mais próprio hoje em dia do que as estações de bairro do metrô paulistano, ao anoitecer. Beija-se aí mais do que nos parques, acreditem. E não é que alguém esteja partindo, adeus, adeus, meu amor. Nada disso. É beijo bem beijado, de encontro marcado. As ruas tornaram-se perigosas; namorar ali é mais seguro.

Beijo é linguagem. Emite sinais diferentes em cada situação: amizade, respeito, submissão, interesse, compromisso, amor, licença para avançar, paixão, entrega, volúpia. Ultimamente, por estimular no organismo a produção de substâncias que provocam sensações agradáveis, o beijo entre os muito jovens tornou-se um fim em si mesmo. Basta beijar bastante, nem é preciso ir em frente.

Por que dizem que a mulher se lembra do primeiro beijo e o homem mal se lembra do último? Essa me vai parecendo uma ideia ultrapassada. É certo que ele era mais banal para os homens, porque as mulheres relacionavam os beijos ao amor e os homens os relacionavam à oportunidade. Em consequência, conseguiam beijar mais do que elas.

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Eles inventaram o beijo roubado para atropelar a relutância romântica delas. Leis modernas transformaram em crime de assédio o beijo roubado, que enfeitou poemas, canções e folhetins de séculos passados. Na verdade, ele veio perdendo prestígio porque, também para elas, beijar se tornou uma questão de oportunidade. O beijo se libertou do amor.

Não me entendam mal. O beijo se libertou do amor, mas o amor não se liberta do beijo.

e-mail: ivan@abril.com.br

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