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Paz nas colinas

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 19h45 - Publicado em 18 set 2009, 20h18

“Qual a este país não existe nem vai existir”, disse-me no elevador o italiano de San Remo, ex-piloto de lanchas de velocidade, que visito no condomínio onde ele mora desde que abandonou as corridas. Com outra linguagem, disse a mesma coisa o poeta Olavo Bilac no começo do século passado: “Não verás nenhum país como este”. Conversávamos sobre liberdade religiosa.

As religiões que se atritam pelo mundo aqui se atenuam, amenizam diferenças, tateiam tolerâncias, surpreendem semelhanças, se olham curiosas. Ele lembra episódios, encantado.

No condomínio, que fica nas colinas de Perdizes, os garotos filhos dos árabes e dos judeus jogam futebol juntos na quadra. As meninas filhas da professora de dança da Hebraica ensinam às coleguinhas da piscina do prédio – entre elas loirinhas, moreninhas e nisseizinhas – as danças e canções judaicas. Em iídiche. E vão todas aprendendo.

Um árabe, que ainda fala com sotaque muito forte, recebe amigos conterrâneos que usam aqueles vestidões e turbantes. Conta que tem 22 filhos, somados os daqui aos da terra de origem, de mães diferentes, brasileiras e árabes. Meu amigo italiano teve a delicadeza de não perguntar quantas esposas lhe deram tantos filhos. Perio-dica-mente, o árabe e esses amigos e parentes que vêm de longe montam tendas em bairros de São Paulo, em praças e parques, e acampam durante uma semana para mostrar ao paulistano como é viver em tendas: fazem preleções sobre a vida, o respeito e a religião, mostrando que são de paz.

O mesmo árabe, muçulmano, com sua família muçulmana, junta doações em casa o ano inteiro, abarrota o apartamento com caixas e caixas de alimentos não perecíveis, roupas e brinquedos, para distribuir na cidade durante o Natal cristão. Várias viagens de elevador lotado e de carro igualmente entupido são necessárias para desovar a grande dádiva. Os filhos usam aquelas bermudonas grunge, tênis desamarrados, mas são todos gentis.

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Uma judia casada com um rabino freqüenta a vizinha academia de ginástica só para mulheres. Tem lindos cabelos bem cuidados. Descobre-se: é peruca, porque certas judias religiosas não podem mostrar o próprio cabelo, a não ser para o marido. Somente em casa ela anda sem peruca. Uma tarde, após a ginástica, ela apresentou o marido à bela loira evangélica, outra moradora do condomínio. Esta estendeu a mão, mas o rabino não a tocou, apenas a cumprimentou com a cabeça. Gentil, porém. Ela pediu desculpas, também gentil, e perguntou:

– Eu lhe estendi a minha mão, mas o senhor não me deu a sua. Por quê?

O rabino respondeu, delicado:

– Eu lhe dou o meu coração, mas a mão um rabino não pode dar.

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Ela achou um encanto.

A simpatia necessária à boa convivência amaciou posições nas colinas. Famílias evangélicas confraternizam com as católicas e judias. Os evangélicos, que costumam querer mudar a religião dos outros (houve até um que chutou uma imagem de santa católica na televisão, não foi?), refreiam os ímpetos missionários. É sabido que muitos deles vêem outros cristãos – católicos, anglicanos, luteranos, ortodoxos, maronitas – como seguidores de “seitas”; tratam religiões afro-brasileiras e espíritas como “do demo”. Não é o que acontece nas colinas: lá, convivem bem com a diversidade, até procuram se informar sobre usos de tais ou quais fiéis.

A moça budista fica naquela posição de Buda, ao pôr-do-sol, na sua varanda, até o fim do lusco-fusco. Acham bonito, uma paz.

Até gaúchos, que quando estão reunidos formam uma espécie de religião, oferecem a possíveis neófitos a cuia de mate ecumênica nos domingos da piscina. Mate quente no sol – só mesmo gaúchos. Pois não é que tem gente que aceita?

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