Paulistanos mudam de vida após infartos
As histórias de quem repensou os hábitos e o sucesso dos programas de reabilitação de cardíacos mantidos por hospitais da capital
Enquanto você lê esta revista, uma pessoa dará entrada em um hospital da capital vítima de infarto. No ano passado, mais de 9 000 paulistanos foram internados com esse tipo de problema, o que significa uma média de um paciente por hora. Esse índice aumentou cerca de 25% nos últimos seis anos. “É uma epidemia, e cresce por causa do nosso estilo de vida estressante, com alimentação ruim, tabagismo e outros hábitos pouco saudáveis”, explica Roberto Kalil Filho, presidente do Instituto do Coração (Incor).
Ao contrário do que ocorria tempos atrás, não há mais um perfil médio de paciente. As mulheres, por exemplo, representavam apenas 10% dos casos há trinta anos. Hoje, correspondem a 48%. Além disso, a média de idade do doente do coração despencou na última década. Agora, o perigo começa antes dos 50 anos.
A incidência em jovens de até 30 anos aumentou em 13% em 2016. “Cresceu muito o consumo de cocaína, crack e metanfetamina, substâncias que provocam espasmos coronarianos”, diz Múcio Tavares, diretor da emergência do Incor. Nesse quadro pouco alentador há, no entanto, uma boa notícia.
Cada vez menos pessoas têm morrido de infarto do miocárdio, o tipo mais fatal da doença. Trata-se da necrose de parte do músculo cardíaco causada pelo entupimento das artérias. Quando isso ocorre, o sangue deixa de passar pelo coração e o órgão paralisa-se em questão de minutos. Cerca de metade dos afetados não chega com vida à porta de uma clínica.
Um levantamento da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp) apontou 5 485 casos fulminantes na capital em 2014, o dado mais recente disponível. Essa é a principal causa de morte por aqui, mas o número baixou 35% em relação aos quatro anos anteriores. “A tendência é continuar caindo”, acredita Leopoldo Piegas, coordenador do Programa do Infarto Agudo do Miocárdio do Hospital do Coração (HCor).
Um dos motivos para a queda é o avanço da tecnologia nos centros médicos. Atualmente, é possível descobrir a proximidade de um ataque cardíaco antes que a vítima apresente os sintomas típicos, como dor no peito, formigamento no braço esquerdo e náusea. Um desses artifícios é um exame de sangue para medir a quantidade de troponina, enzima que se multiplica na hora do ataque.
Em outros tempos, essa análises— identificava infartos que se haviam iniciado pelo menos seis horas antes. Hoje é possível detectá-los em uma hora. Além disso, 95% das ocorrências são agora resolvidas com procedimentos pouco invasivos, como a aplicação de stents, tubos usados para ampliar o fluxo nas artérias.
Antes, o peito era aberto para a colocação de ponte de safena. Há novidades também na triagem do pronto-socorro. As cinco unidades do São Luiz na capital instalaram um “botão de dor no peito” no totem da retirada de senhas. Ao apertá-lo, o paciente é priorizado, o que reduziu o tempo de atendimento de infartos em 60%. “Quanto mais rápido for o acolhimento, maior a chance de sobrevivência”, diz André Feldman, cardiologista da rede.
Essas medidas mais imediatas não são as únicas armas da medicina no combate a infartos. Os principais centros de saúde da capital têm colhido resultados positivos em seus programas de reabilitação de longo prazo e, assim, melhorado a vida de cardíacos (confira as histórias ao longo da reportagem).
Criado em 2014, o Programa de Reabilitação e Prevenção Cardiovascular do Hospital Sírio-Libanês reúne seis profissionais, que, ao longo de quatro meses, aplicam uma rotina de atividades físicas aos pacientes no pós-operatório. Em média, há melhora de 22% na capacidade física. “O trabalho ajuda no fortalecimento do coração”, diz Roberta Saretta, gerente médica do Centro de Cardiologia do hospital.
Os frequentadores comemoram até a execução de tarefas simples. “Consigo caminhar e correr sem sentir falta de ar”, diz o engenheiro Juraci de Castro, 58, que sofreu dois infartos e usa as esteiras do Sírio há um ano. O Albert Einstein também promove, desde 2009, um programa físico completo para cardíacos.
Por ali, há 25% de melhora na capacidade aeróbica, em geral. E o Instituto do Coração oferece exercícios, uma a três vezes por semana, com o apoio de cardiologistas, nutricionistas e psicólogos. Hoje o projeto atende aproximadamente 300 pessoas, que pagam mensalidade entre 134 e 435 reais ou ingressam via SUS ou convênios. Em média, os participantes perdem 10 quilos em quatro meses.
Alguns projetos mais antigos também renderam frutos nos últimos tempos. Um dos mais relevantes é o do HCor, que atendeu quase 5 000 pessoas em dezoito anos. Os inscritos são assistidos por uma equipe multidisciplinar, que checa a evolução da doença com telefonemas ou por meio de um sistema de monitoramento sem fio das funções vitais.
Graças a esse acompanhamento, a taxa de mortalidade de cardíacos caiu 30% em cinco anos. “Comecei a sentir dores no peito e descobriram a necessidade de um transplante”, diz o administrador de empresas Vanir Nogueira, de 48 anos, que está na fila para o procedimento.
Um dos pioneiros nessa área, o Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia recebeu cerca de 5 000 pacientes com problemas coronários desde os anos 70, com exercícios físicos e suporte de nutricionista. “Nossa taxa de reabilitação é de 99%”, diz Nabil Ghorayeb, chefe da seção médica de cardiologia do esporte na entidade.
O poder público também se uniu na missão. Em 2016, a Socesp e a prefeitura retomaram o Projeto Infarto, iniciado em 2010. O programa treina equipes médicas da periferia na detecção de dores no peito que possam evoluir para um infarto e aplicação de um remédio chamado trombolítico, para dissolver o coágulo que bloqueia a artéria.
Assim, a vítima é transportada até uma rede que ofereça serviços de cateterismo e angioplastia. Das 600 ocorrências de infarto atendidas em 2016 pelo Hospital São Paulo, mantido pela Unifesp, 83% vieram encaminhadas dessa forma. “Conseguimos reduzir o índice de mortalidade de 15% para 3% nessa população”, afirma Antonio Carlos de Camargo, chefe de cardiologia da Escola Paulista de Medicina.
A tecnologia tende a melhorar o cenário no futuro. Desde 2014, o Incor testa um ultrassom associado a uma “injeção de microbolhas”, técnica capaz de desobstruir as artérias durante um ataque. O aparelho substitui medicamentos que provocam efeitos colaterais, como sangramento.
Uma nova geração de remédios também entrou no mercado, caso do Ticagrelor e do Prasugrel, anticoagulantes mais eficazes que os tradicionais. “Com esses avanços, as pessoas não deveriam mais ter ataques do coração”, diz Kalil, do Incor. “Para isso, basta abandonar o estilo de vida alucinado de hoje em dia.”
Transformação radical
Depois de uma briga com o marido, em 2008, a engenheira Vilma dos Santos, de 43 anos, tomou um ansiolítico e foi dormir. Acordou uma semana depois na UTI de um hospital no Guarujá, com a notícia de que havia sofrido três paradas cardíacas por causa de um infarto. Ao receber alta, dois dias depois, ela só tinha uma certeza: “Precisava mudar radicalmente se quisesse continuar viva”. Na época, pesava quase 100 quilos, vivia estressada com o trabalho e infeliz no casamento. Resolveu largar o marido e voltar para São Paulo, sua cidade natal. Trocou de emprego, fez regime e perdeu 20 quilos. Hoje, faz aquilo de que gosta e, nas horas vagas, d iverte-se em baladas com amigos. “Renasci.”
Drama precoce
Durante uma madrugada de setembro de 2013, o estudante de psicologia Matheus Henrique de Oliveira Almeida, 22, sentiu dores insuportáveis no peito e foi levado às pressas a um pr ontosocorro em Interlagos. Logo após os exames preliminares, a médica perguntou que tipo de substância ele havia consumido. “Tive de assumir que tinha bebido e usado cocaína. Minha mãe ficou desesperada”, conta. O tratamento, com remédios anticoagulantes, durou quinze dias. “Percebi que havia ganhado uma nova chance. Voltei aos estudos com mais vontade, minhas notas melhoraram e arrumei um estágio”, afirma o jovem, que, desde então, parou de consumir entorpecentes.
Susto a dois
Com histórico de problemas cardíacos na família, a administradora Graça Rodenburg, 57, teve um infarto em 2015 e já fez quatro cirurgias. Durante os períodos de internação no Sírio-Líbanês, seu marido, Roberto, 63, era sempre flagrado pela equipe médica comendo hambúrguer e batata frita. Convidado a fazer um check-up, descobriu que estava prestes a também ter um ataque cardíaco. Submeteu-se a uma operação em duas artérias e ficou três dias na UTI. Depois disso, ambos mudaram a alimentação e passaram a fazer exercícios físicos. Graça também se aposentou, deixando um emprego que a obrigava a viajar com frequência. “Agora faço o que me dá prazer.”
Coxinhas vetadas
Há sete anos, o veterinário Mauricio Mininel, 45, precisou colocar três pontes de safena em uma cirurgia de emergência. “Acordei com enjoo e fui ao hospital dirigindo, achando que era gastrite. Lá, foi diagnosticado o infarto.” Após receber os primeiros medicamentos, foi encaminhado ao HCor, onde passou por uma operação e ficou internado por uma semana. Hoje, mantém uma rotina de caminhadas quase diárias no Parque do Ibirapuera e evita coxinhas e cheeseburgers, que costumava consumir quase todos os dias. “Minhas meninas me ajudam a resistir à tentação; elas fazem vigilância o tempo todo”, comenta, referindo-se às filhas, Manuela, 18, e Eduarda, 10.
Velocidade máxima
Quem vê o maratonista Roberto Itimura, 56, espanta-se ao descobrir que ele já sofreu três infartos, entre 2006 e 2009. Ex-dono de loja de eletrônicos, trabalhava quinze horas por dia, fumava três maços de cigarros e vivia de coxinha, pastel e quibe. “Após os ataques, entendi que a atividade física seria minha saída.” Em suas corridas, ele usa um frequencímetro, para medir os batimentos cardíacos e não exceder os 170 por minuto, e um GPS, que permite a seu médico monitorar a velocidade e a distância percorrida.
A maior batalha
Radicado no Brasil há cinco décadas, o italiano Guido Comolatti, 97, lutou pelo Exército de seu país natal na II Guerra Mundial e chegou perto de ser preso pelas tropas inglesas na Líbia, no norte da África. Mas uma de suas maiores lutas ocorreu há sete anos, quando sofreu um infarto durante uma viagem à Itália e ficou uma semana internado. Voltou ao Brasil e realizou uma cirurgia para implantar um stent no HCor. A experiência o deixou mais forte para seguir a vida. “Hoje tenho disposição para fazer tudo sozinho, como tomar banho, escovar os dentes e me barbear”, diz.
Carnaval adiado
Quando chegou ao hospital, em fevereiro, com dores no peito, o dentista Vinicius de Moraes, 44, tinha planos de viajar no mesmo dia para o Rio de Janeiro a fim de desfilar no Carnaval. “Só percebi a gravidade da situação quando a médica me contou que eu estava tendo um infarto.” Logo após a cirurgia, durante a qual foram implantados três stents, ele decidiu ter uma rotina menos frenética. Diminuiu as horas de trabalho, passou a atender em menos consultórios e, agora, estuda para uma nova profissão: terapeuta holístico. O gosto pelo Carnaval, entretanto, permanece intacto. “No ano que vem vou para a folia, mais renovado”, planeja.