“Famílias devem falar sobre doação de órgãos”, diz médica Luciana Haddad
Presidente da Associação Brasileira de Transplante reconhece avanços de ações como o “Setembro Verde”, mas vê necessidade de o tema ser tratado o ano todo
Recém-conduzida à prestigiosa cadeira de presidente da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, a professora Luciana Haddad, 44, médica do serviço de transplantes de órgãos abdominais do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, chegou no momento em que o setor está em evidência, não só pela exposição pública do caso do apresentador Fausto Silva, que recebeu, em agosto do ano passado, a doação de um coração, mas também pela crescente nos índices do Brasil.
Entre janeiro e setembro de 2023, foram 6 559 procedimentos país afora, um aumento de 12% na comparação com o ano anterior. “A expectativa é que passaremos os números pré-pandemia para alguns órgãos, como fígado”, afirma Luciana.
Além de médica e professora, ela é triatleta e tem um canal no YouTube (FalaLu!) sobre medicina e qualidade de vida, que surgiu durante a pandemia e precisou ser reinventado depois de a autora sofrer um grave acidente de bicicleta. “Eu poderia ter perdido o movimento das pernas, mas sete meses depois do acidente eu voltei ao esporte.”
A seguir, confira a entrevista.
A senhora assumiu a associação com o tema transplante de órgãos em evidência pelo caso do apresentador Fausto Silva e com índices positivos de doações. Após um aumento de 12% em 2023, quais os desafios para 2024?
Desde o início o desafio é atender a demanda. Fazemos trabalhos intensos por mais de trinta anos, para sempre fortalecer o sistema. Um dos motivos de o número de transplantes crescer é o sucesso do próprio transplante. Como tem cada vez mais resultados positivos, as indicações se ampliam.
O que mudou nos últimos anos no segmento de transplantes?
A evolução é tremenda. Tem desde um melhor cuidado do paciente em fila de espera, passando por melhores medicamentos, além de educação médica, infraestrutura. Hoje conseguimos fazer transplantes em pacientes mais idosos, com comorbidades, o que não ocorria anteriormente. O tratamento pós-transplante segue na mesma linha. As coisas são muito conectadas.
Qual o maior empecilho para que uma doação aconteça? Família, vontade própria, falta de informações etc.?
A maior parte da população é favorável à doação de órgãos. A questão é o momento do aceite e da negativa, que é extremamente delicado. Quem perde um ente próximo muitas vezes tem que decidir rapidamente. Isso passa muitas vezes pelo fato de a família não ter uma decisão prévia tomada. É importante que as famílias conversem sobre doação de órgãos
Mesmo entre famílias mais esclarecidas há uma série de dúvidas e tabus que podem impedir uma doação?
Por isso o diálogo é importante. Na época do caso do Faustão, eu fiz um jantar com a minha família e todos puderam se manifestar. O assunto é sempre mais abordado durante as campanhas em setembro, mas precisamos falar o ano todo. Casos famosos são oportunidades para isso. O desejo de todos é viver muito, mas não custa deixar registrado que a pessoa é doadora de órgãos.
O governo federal planeja criar incentivos financeiros para aumentar a lista de doadores e melhorar o sistema de doação. A medida seria eficaz?
A gente participa próximo ao sistema nacional de transplantes e sempre que possível também participa das tomadas de decisão. O governo prepara uma série de mudanças nas leis para que se aumente o número de doadores, não o sentido contrário. Quando falamos em transplante, precisamos falar de financiamentos para que o sistema possa crescer.
No seu Instagram e no YouTube, a senhora dá dicas de saúde, exercícios, qualidade de vida, e sempre cita estudos científicos. Não é o mais comum no mundo da internet, local em que as pessoas falam e acreditam em qualquer coisa.
Entendo redes sociais como um local com potencial de educação. As pessoas se informam muito por esses meios. E por que não levar informação de qualidade, gratuita, de forma acessível? Sempre foi a minha ideia. Apesar do conteúdo científico, tento descomplicar a ciência. Nunca falo a minha opinião, pois não é assim que a ciência funciona. Se hoje a melhor evidência diz que o que funciona para performance é essa substância específica, é porque a ciência faz pesquisas sobre aquilo. A ciência demora, requer qualificação.
Qual a substância da moda hoje nas academias? Creatina, colágeno?
Há várias. 2023 foi um ano importante para a creatina, que é um suplemento antigo, com mais de vinte anos de pesquisas muito boas. Saíram estudos muito importantes sobre como a substância atua no cérebro, diferente do que o atleta usa para os músculos.
A senhora teve um papel fundamental no grupo que liderou os atendimentos de Covid no HC no auge da pandemia. Esse período mudou seu modo de ser médica ou mudou seu trabalho?
Mudou muito. Foi um dos períodos mais marcantes, não só para mim, como para os profissionais da saúde. Ficamos seis meses no atendimento de Covid-19 aqui no HC. Aprendemos a trabalhar com outras áreas, com outras pessoas, como as da limpeza, enfermagem, gestores, todos com o mesmo objetivo em comum. Se não tivéssemos essa capacidade de mobilização para tratar casos graves, teríamos perdido muito mais vidas. Foi uma lição.
Há alguns anos a senhora sofreu um acidente grave enquanto andava de bicicleta. Como foi retomar as provas de triátlon e quais dicas dá para quem parou de se exercitar, independentemente do motivo, e quer ou precisa recomeçar?
O canal FalaLu! nasceu na pandemia, falando sobre Covid. Mas se transformou em qualidade de vida por causa do acidente. Até lá eu falava muito sobre Covid. Eu precisei me reinventar. Tive uma lesão grave de coluna. Podia ter perdido os movimentos. Foi um aprendizado recomeçar a andar até ganhar músculos e me movimentar na bike. É um processo que não é rápido, mas é diferenciado quando há pessoas boas ao lado. Eu tive a oportunidade de ficar na Rede de Reabilitação Lucy Montoro, em um nível de excelência incrível. Seria importante que todos tivessem acesso aos atendimentos que eu tive. Recomeçar é mais fácil do que começar. A pessoa já sabe como as práticas esportivas são boas, mas ela sempre vai precisar de um apoio. É importante começar pequenininho, com caminhadas de vinte minutos. Depois de seis meses você se reconhece como outra pessoa.
Publicado em VEJA São Paulo de 5 de janeiro de 2024, edição nº 2874