Alcatrazes: a nossa Fernando de Noronha
Localizado em São Sebastião, o arquipélago está próximo de se tornar o primeiro parque nacional marinho do estado de São Paulo
A 43 quilômetros de São Sebastião encontra-se um dos maiores paraísos do litoral paulista, o arquipélago de Alcatrazes. Essa distância pode ser vencida numa viagem de uma hora num barco veloz. Conforme se aproxima da região, o visitante é recebido por bandos de fragatas (também conhecidas como alcatrazes, que acabaram inspirando o nome do local).
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Há cerca de 20.000 aves do tipo por ali, formando o maior ninhal do país. O espetáculo da revoada desses bichos, que chegam a tingir o céu de pontos negros em determinados momentos do dia, representa um dos principais cartões-postais do arquipélago, ao lado do Pico da Boa Vista, um paredão granítico com 316 metros.
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Em terra, a vegetação típica de Mata Atlântica próxima do mar vai se transformando em cerrado nas partes altas. Sua hóspede mais famosa é a traiçoeira jararaca-de-alcatrazes, uma cobra peçonhenta de apenas 50 centímetros de comprimento que só pode ser vista naquela região. Ela se alimenta de centopeias e lagartos de pequeno porte, e seu veneno pode ser fatal para uma pessoa.
A beleza das águas é uma atração à parte. Elas possuem um tom azul que se transforma em esverdeado com o bater do sol. Mesmo a mais de 5 metros de profundidade dá para ver o fundo rochoso, vários cardumes e, com alguma sorte, tartarugas-verdes com mais de 1 metro de comprimento e grupos de golfinhos.
Cerca de quarenta espécies de peixes ameaçados de extinção frequentam a área, atraídos por grande quantidade de nutrientes. Até as baleias-de-bryde, praticamente extintas na costa nacional, costumam surgir em suas águas, enquanto outros cetáceos, como a jubarte e a franca, fazem aparições eventuais.
Uma exceção no quadro acelerado de degradação que atinge várias das belíssimas paisagens do nosso Litoral Norte, esse santuário, formado por cinco ilhas grandes, quatro pequenas e cinco lajes, virou uma estação ecológica em 1987. Na época, foi estabelecida uma série de restrições, como a proibição total de pesca.
Encontra-se no momento em fase final de tramitação um projeto que pretende transformá-lo no terceiro parque nacional marinho do Brasil (os outros dois são Fernando de Noronha, em Pernambuco, e Abrolhos, na Bahia). Há vários tipos de benefício na medida.
Com a mudança, a área de preservação aumenta para 150 quilômetros quadrados, seis vezes a atual. A nova configuração resolve também um dos problemas que ocorrem hoje em dia, que é o uso da ilha principal como alvo para exercícios de tiro da Marinha. Essa atividade será deslocada para uma ilha secundária, atendendo a uma antiga reivindicação dos ambientalistas.
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Por fim, visitas de turistas passam a ser permitidas, com mergulhos e passeios monitorados sem desembarque. “Quanto mais gente conhecê-lo, mais pessoas entenderão a importância de investir em ações ligadas à preservação e fiscalização”, afirma a bióloga Kelen Leite, de 29 anos, chefe do Instituto Chico Mendes da Biodiversidade (ICMBio), em São Sebastião, uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Meio Ambiente.
Kelen faz parte do time de especialistas que começou em 2010 o movimento para modificar o status legal do arquipélago. A ação está aos cuidados do Ministério do Meio Ambiente, que vem consultando outros órgãos do governo sobre o assunto nos últimos meses. Caso nenhum deles encontre qualquer tipo de impedimento na ação, um parecer favorável será encaminhado à presidente Dilma Rousseff, que pode sancionar o projeto por decreto. Não existe prazo determinado para esses últimos trâmites, mas as previsões mais otimistas apostam que isso poderia ocorrer já no próximo mês. “Fizemos o possível, e agora só nos resta torcer”, diz Kelen.
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Há dois anos ela trabalha como xerife do pedaço, organizando equipes de pesquisadores e liderando os trabalhos de vistoria em busca de marinheiros que insistem em se aproximar da área protegida. Somente neste ano ocorreram cinco prisões, todas elas relacionadas à pesca ilegal.
O episódio mais rumoroso — e surreal — envolveu uma das autoridades que deveriam estar zelando pela área. Em março, o vice-prefeito de São Sebastião, Wagner Teixeira, acabou detido nos arredores de Alcatrazes sem autorização para navegar na região e com 116 quilos de peixe guardados num compartimento do barco.
Levado de lá para a delegacia da Polícia Federal em São Sebastião, ficou quatro horas prestando depoimento. Foi liberado depois de pagar uma fiança de 9.200 reais. Agora, responde a um processo que, em caso de condenação, pode lhe render uma pena de até três anos de detenção. “Eu estava ali apenas para ver e fotografar, não cometi crime algum”, defende-se Teixeira, que é filiado ao Partido Verde.
O arquipélago tem uma história tão rica quanto a sua biodiversidade. Segundo cálculos de especialistas, realizados com base em análises das formações rochosas, a constituição de Alcatrazes deu-se cerca de 12.000 anos atrás. Seus primeiros frequentadores conhecidos, os índios tupinambás, batizaram o local de Uraritã (terra de aves, numa tradução livre, segundo o idioma da tribo).
Os registros oficiais a respeito da existência do conjunto têm início em 1530, com um relato do navegador Pero Lopes Souza à Coroa portuguesa. Na ocasião, a ilha principal serviu como ponto de abastecimento de sua frota. Os exploradores usaram a parada para coletar peixes e madeira, antes de retomar viagem para o sul do país.
Devido ao ambiente inóspito para a ocupação humana (não há praias nem água doce), apenas uma casa foi erguida por ali na história. A construção remonta ao início do século passado e teria servido de moradia para um antigo zelador do arquipélago. A partir da década de 50, o local se tornou fonte de renda para moradores de praias das redondezas, como a de Boiçucanga. Eles aproveitavam a quantidade de pássaros para extrair o guano, excremento usado como fertilizante.
Atualmente, somente alguns grupos de profissionais recebem autorização para se aproximar e desembarcar em Alcatrazes. Um deles é o pesquisador Marcos Santos, do Instituto Oceanográfico da USP. Ele vem catalogando a vida marinha de cetáceos na costa há quase vinte anos. “A primeira vez que vi uma baleia-de-bryde na vida foi em Alcatrazes”, recorda. Ela se aproxima do litoral paulista na primavera e no verão, mas dificilmente é vista, apesar do tamanho, que pode chegar a 15 metros de comprimento.
Desde o começo deste ano, Santos realizou duas expedições ao arquipélago. “Gostaria de ir com mais frequência, mas há muita burocracia para conseguir autorização”, lamenta. Nessas expedições, costuma sair cedo do continente, ancora nas proximidades da maior ilha e fica lá pelo menos sete horas. A região tem rendido bons frutos ao seu trabalho. Ele registrou a presença de várias espécies de golfinhos e de baleias, como a franca e a minke.
Raros são os casos em que há permissão para alguém desembarcar. Quando isso ocorre, quem costuma acompanhar os visitantes é o guia Roberto Chagas, de 39 anos. Com experiência reconhecida em abrir trilhas em matas fechadas do Litoral Norte, foi convocado há dez anos para fazer esse tipo de serviço em Alcatrazes.
Poucas pessoas hoje conhecem tão bem o lugar quanto ele. É um dos únicos capazes de fazer o difícil caminho até o Pico da Boa Vista, trajeto que dura quatro horas se realizado num ritmo rápido. “A rota é íngreme e exige bastante da gente”, explica. “Mas o esforço compensa pelo visual que dá para apreciar ali de cima.”
A bióloga Kelen é outra profissional que se encantou com a região. Funcionária do ICMBio há quase seis anos, foi indicada em 2010 para assumir a unidade em São Sebastião. Lembra com carinho a primeira vez em que deparou com o cenário. “O dia estava nublado, o mar muito mexido, mas, quando vi Alcatrazes crescendo na minha frente, me apaixonei”, conta. “Foi inesquecível.”
No seu trabalho de fiscalização, irrita- se com o lixo trazido pelas marés (já encontrou até uma carcaça de um monitor de micro por lá) e virou inimiga dos pescadores, que atuavam com mais liberdade no local até a chegada da xerife. “É um dos lugares mais bonitos que já vi na vida, preciso cuidar dele.”
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Riquezas na fauna e na flora
Alguns dos fatores que tornam o santuário do Litoral Norte muito especial
■ A área reúne 92 tipos de ave. O grupo mais populoso é o das fragatas, ou alcatrazes. São cerca de 20.000, formando o maior ninhal dessa espécie no país
■ O arquipélago tem 160 peixes catalogados, 25% deles ameaçados de extinção ■ Há 130 plantas registradas. Desse total, quatro espécies são encontradas apenas dentro do arquipélago (duas begônias, um antúrio e uma gloxínia, chamada de rainha-doabismo por florescer à beira de penhascos)
■ Uma das raridades do local é a jararaca-de-alcatrazes. Com apenas 50 centímetros, a cobra-anã se alimenta de centopeias e pequenos lagartos, mas seu veneno pode ser fatal para as pessoas