Feito pluma
Humor e asas à imaginação fazem os amantes de peças preciosas voar à Van Cleef & Arpels, a mais "poética" entre as joalherias da Praça Vendôme - agora também em São Paulo
Como qualquer apaixonada por joias, a historiadora Catherine Cariou está em êxtase com sua aquisição mais recente: uma gargantilha de ouro com cinco voltas, cujos mais de 100 elos em forma de canoa carregam, cada um, três diamantes redondos. Na frente, na altura em que uma mulher pousa a mão em sinal de quem está sem palavras, salta uma cabeça de leão, com olhos de esmeralda – os caninos de 18 quilates seguram duas argolas incrustadas de diamantes. Catherine tira a joia de uma caixa de acrílico e a segura contra a luz que vem da janela aberta para uma das ruas do quartier Vendôme, o número 1 de Paris. Destaca, então, as partes: o leão vira broche, as argolas, pulseiras. “É genial”, diz, mostrando a peça, de 1971. A gargantilha custou 902 500 dólares, sete vezes a estimativa inicial do leilão de dezembro da Christie’s. Foi uma encomenda do ator Richard Burton à Van Cleef & Arpels para comemorar o primeiro neto da mulher, a atriz Elizabeth Taylor, aos 39 anos. Terá lugar garantido entre os 400 itens reunidos na exposição sobre a joalheria francesa, entre setembro deste ano e fevereiro de 2013, na Galerie des Bijoux, uma das alas-chave do museu Les Arts Décoratifs, na Rue de Rivoli. Liz Taylor sentiu “o coração bater como castanholas” ao pôr os olhos violeta no presente do então marido. Uma reação bem diferente teve a atual, por assim dizer, proprietária – mais interessada na criação inovadora do que no brilho da peça. “Cheguei ao limite do orçamento para assegurar que esse exemplo de peça múltipla, que se transforma em várias, voltasse para a joalheria.”
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Catherine responde sozinha pelo departamento de memória da casa, estabelecida em 1906 com a união entre Estelle Arpels, filha de um negociante de pedras preciosas, e Alfred van Cleef, de uma linhagem de lapidadores. Garimpa em leilões, antiquários e cofres de família exemplares produzidos ao longo do século passado. Parte do seu esforço está em casar uma joia com o respectivo cartão de “commande spéciale” – caso do alfinete em forma de plumas que abre esta reportagem, pedido especial de S.M. Edouard VIII (do francês Sa Majesté) sete dias depois de abdicar do trono da Inglaterra, em 1936, e entrar para a história como duque de Windsor. Numerado, cada cartão contém um guache, o nome do cliente, a data do pedido e a receita detalhada do feitio, com a quantidade de pedras, os quilates e gramas de metal precioso incluídos. “Veja, este é do conde Matarazzo”, mostra ela, entregando o papel amarelado pela passagem de 76 anos desde a encomenda número 45 050, feita pelo maior industrial brasileiro do começo do século XX, do bracelete (6 gramas de ouro, 117 rubis de 3,1 quilates e 48 rubis de 11,65 quilates). “Será que a nossa chegada ao Brasil trará à tona peças como esta?” Na planta arquitetônica, próximo à doceria Ladurée, à Lanvin e à Bottega Veneta, a grife é a conquista favorita do empresário Carlos Jereissati Filho para o Shopping JK Iguatemi, em São Paulo.
Em uma década, a diretora de memória organizou e adquiriu 600 peças. É a mesma quantidade comprada pela maior cliente do número 22 da Praça Vendôme, a maharani Sita Devi de Baroda. (Falida depois de décadas no jet set, a princesa indiana – identificada nos cartões com o pseudônimo de “Ms. Brown” – leiloou a coleção em 1974, em Mônaco; nenhum dos colares, brincos, anéis e broches está no acervo.) Os esforços da historiadora não se prestam a deixar mofar as joias no prédio da Rue Danielle-Casanova, a dois minutos de caminhada da Vendôme. Não há, na verdade, arquivo morto. “Vivemos do nosso acervo, de referências culturais, da natureza e da fantasia”, diz Nicolas Bos, diretor do ateliê e presidente da Van Cleef para as Américas. Francês, Bos fica em Nova York e já se acostumou a pronunciar o sobrenome de Alfred à moda anglo-saxônica: troca o “Cléf”, do original francês, por “Clif”. Na rua parisiense, as caixas de acrílico não são tratadas como tesouros de museu. Viajam entre a sala de Catherine e a sala de desenho, onde uma geração de 20 e poucos anos — com dreadlocks nos cabelos, esmalte azul nas unhas e tênis Converse nos pés — pinta a guache cada uma das cerca de 150 joias das coleções de alta-costura, repetindo os cartões do passado um dia depois do outro.
Da mais recente coleção de joias únicas, Couleurs de Paradis, passarinhos enamorados saem do papel, coloridos para a vida real por turquesa, ônix, calcedônia e safiras. No colar da página ao lado, a ideia da peça múltipla revive: o macho que traz o coração de safira para a fêmea, à espera no poleiro de ouro, é um broche e pode ser preso a qualquer altura das turquesas. É o espírito do colar Zíper, que, fechado, se torna um bracelete. O sistema levou mais de uma década para ser aperfeiçoado, virou joia em 1951 e continua em plena produção. Outras invenções icônicas — a incrustação que coloca as pedras lado a lado como miniparalelepípedos, dos anos 30, e os trevos da linha Alhambra, de 1968 — reaparecem todo ano. “O que torna a Van Cleef única é o fato de dominar a técnica em peças bem-humoradas, quase loucas, com volumes que nada têm de clássicos”, resume Evelyne Possémé, responsável pela seleção da mostra do Arts Décoratifs. E dar asas a rubis, esmeraldas e diamantes mantém aceso o caso de amor dos clientes com a joalheria.