A tradição de moldar a sopro lustres e taças finíssimos
Em um vilarejo francês, dentro de uma fábrica rústica de 1586, a cristaleria Saint Louis já produziu copos para Luís XV e o general de Gaulle
Saint-Louis-lès-Bitche, de tão pequena, presta-se a uma brincadeira popular: é cortada por uma única rua, em cuja placa se lê, ao mesmo tempo, bienvenue e rentre-bien (“bem-vindo” e “bom retorno”). A maneira mais rápida para chegar ao vilarejo é embarcar no TGV, em Paris, para uma viagem de cerca de uma hora e meia até Metz. Dali, pela autoestrada A4, seguem-se outras duas horas ao extremo nordeste da França. À medida que o carro entra na região de mata fechada, aparecem indicações para localidades como Diemeringen, Creutzwald e Saarbrücken. LèsBitche é um pedacinho do hexágono francês, mas há poucos indícios da língua que exige biquinho para pronunciar cada sílaba. Entre 1871 e 1919, o território — a Alsácia-Lorena — pertenceu à Alemanha. A herança é tão forte que os franceses nem sequer entendem o dialeto das conversas informais.
Foi no meio desse verde denso, um eco da vizinha Floresta Negra, que a Saint Louis começou a produzir cristais. “A madeira dos pinheiros alimentava os fornos usados na fusão da matéria-prima para fazer copos”, diz Bertrand Feugat, diretor da Cristalleries de Saint Louis, a mais antiga do país. Dali saíram as taças da corte de Luís XV, os copos criados em 1834 que seriam adotados pelo general Charles de Gaulle, presidente da França entre 1959 e 1969, nas recepções no Palácio do Eliseu, e copos e lustres feitos sob encomenda para as dinastias do Oriente Médio.
Em 1586, quando a Sain Louis começou a funcionar, os pinheiros ardendo a 1.800 graus centígrados derretiam areia, soda e cálcio para fazer copos de vidro. Os cristais vieram só a partir de 1781. Foi quando os artesãos descobriram o segredo da já então centenária cristaleria inglesa: a adição de chumbo na fusão. É o metal que proporciona as principais vantagens em relação ao vidro: som de orquestra afinada, peso pesado, um índice mais alto de refração da luz — o mesmo fenômeno de um raio de sol que atravessa a chuva e cria o arco-íris. Em outras palavras, a capacidade de brilhar do cristal está no meio do caminho entre a do vidro e a do diamante.
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Há resquícios da produção centenária na fábrica. Doze fornos do século XVI são iluminados por um lustre de 106 lâmpadas, 650 quilogramas de peso, 2,80 metros de altura e 1.480 componentes. Eles são uma das atrações do museu aberto ao lado dos atuais fornos a gás, 24 horas em funcionamento, sete dias por semana. O exemplar foi produzido para iluminar a história da Saint Louis — e jogar os holofotes sobre uma profissão que é marca registrada da região: o verrier (soprador de vidro). “Queremos incentivar uma nova geração a permanecer em Lès-Bitche e prosseguir com uma técnica quase extinta no universo do cristal: o sopro”, diz Feugat.
O diretor da fábrica tem razões para se procupar. Foi com a atividade da cristaleria que Saint-Louis-lèsBitche, por assim dizer, cresceu. Dos 547 moradores contabilizados no mais recente censo, 250 trabalham na cristaleria. Na última década, no entanto, a população diminuiu em 15%. Um dos incentivos é valorizar a passagem pela escola técnica. Aprender a arte da escultura em vidro (verre, em francês, daí a origem do ofício) leva dois anos. Nesse período, o estudante torna-se apto a soprar a massa quente, cortar e gravar. Para decorar, precisa de mais um ano. Mas, para virar um verdadeiro mestre, vai necessitar de uma década de prática.
Na Saint Louis, há exceções como François Dubois, com cinco anos de casa. Aos 22 anos, ele foi eleito o melhor do país em 2011 pelo Ministério da Cultura. Hoje, comanda a equipe responsável por elaborar as peças maiores — caso do lustre que figura na abertura desta reportagem — e mais difíceis do que uma taça. “Aprendi em família”, diz Dubois, chefe da área em que nascem os cristais, chamada de verre chaud (vidro quente). É raro ver mulheres nessa etapa. Elas se concentram no verre froid (vidro frio), em salas silenciosas. Ali decalcam arabescos nas peças e usam pincéis extrafinos para preenchê-los com tinta à base de ouro. “Aqui é quente demais para a maioria delas”, afirma Dubois. Em meados de junho, a combinação do calor do verão europeu com os fornos resultou em 70 graus centígrados nas instalações da Rue Coetlosquet. O expediente, das 5h45 da manhã às 14 horas, teve de ser interrompido.
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A alta temperatura é apenas um dos impedimentos para o sexo frágil. Para segurar as barras de metal que funcionam como canudo gigante para a massa ardente, soprá-la a plenos pulmões ao esculpir uma peça, manusear limas, pinças gigantes e maçaricos, só mesmo a combinação de tríceps e sensibilidade. “Fiquei impressionado ao observar a equipe em pleno domínio do trabalho”, diz o arquiteto Denis Montel, do escritório francês RDAI, autor da linha de copos Lydée. A coleção tem aparência rústica, e o resultado é um visual moderno. A técnica, no entanto, permanece como nos velhos tempos. Soprados na boca, cortados a olho e lixados no som medido pelo ouvido, Lydées, Trianons e Tommys só podem mesmo ser lavados a mão.