Sábado, 17 de outubro de 1992, 10 da manhã. Atrasado, Sergio Habib engata uma rápida marcha a ré no Citroën XM para sair da garagem de sua casa e por pouco não bate em um Jaguar que vinha pela Avenida Amarílis, no Morumbi. O motorista xinga, ele pede desculpas e os dois voltam a acelerar. Seguem juntos por 24 quilômetros, um atrás do outro, passando pelas avenidas Engenheiro Oscar Americano e dos Tajurás e pelas marginais Pinheiros e Tietê, ambos em direção ao Salão do Automóvel. Entram no estacionamento do Anhembi e param próximos. “Ele deve ter achado que eu o estava seguindo por causa do xingamento. Mas fiz o trajeto inteiro pensando só no carro”, conta Habib.
“Quando cheguei ao meu estande, falei para o pessoal: ‘Vamos importar Jaguar, não tem loja da Jaguar no Brasil’.” Decidiu ali, na hora. Veloz e arrojado assim como o bólido inglês, capaz de ir de zero a 100 quilômetros por hora em cinco segundos, o empresário paulista de 52 anos não costuma titubear na arrancada. “Ser rápido é bom e ruim: bom porque quando vejo uma oportunidade não deixo passar; ruim porque o risco de errar aumenta”, diz Habib.
Dono de 55 concessionárias (21 delas na capital) de diferentes marcas — além de Jaguar (3 lojas), representa Citroën (45), Ford (5), Volkswagen (1) e Aston Martin (1) — e do autoproclamado maior faturamento em vendas de carros no país (cerca de 4 bilhões de reais por ano), Habib ambiciona dobrar o tamanho do seu grupo, o SHC. Acaba de investir cerca de 340 milhões de reais para trazer ao Brasil os carros da JAC, a terceira maior fabricante de caminhões da China. Os modelos estão expostos no 26º Salão Internacional do Automóvel, que começou na última quarta-feira.
Com a abertura simultânea de 46 revendas (34 próprias), espera comercializar um volume de 35 000 veículos chineses no ano que vem. A data escolhida pelos parceiros orientais para a inauguração das lojas é 18 de março — o número significa “vida longa” na China. No cardápio, três modelos: o compacto J3 (38 000 reais), o sedã J5 (55 000 reais) e a minivan J6 (58 000 reais). A ideia de Habib é abocanhar já na largada uma fatia de 1% das vendas de veículos no mercado interno.
No caso da JAC, a confiança no sucesso a curto prazo é baseada em uma característica do comprador brasileiro: a infidelidade automotiva. “Na Alemanha, 55% dos consumidores são fiéis a uma marca. No Brasil, são só 8,5%. Isso porque aqui tem uma massa que nunca comprou carro. Ninguém diz: ‘Eu sou Ford porque o meu pai andava de Ford’. Isso não existe no Brasil. É assim: ‘Meu avô andava de jegue, meu pai pegava ônibus e eu vou comprar um JAC’”, dispara.
O império sobre rodas de Habib começou a ser erguido em 1985, quatro anos após ter se formado em engenharia eletrônica pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap). Naquele ano, montou lojas de acessórios para veículos na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, e em Aricanduva, na Zona Leste. Em 1990, o grupo chegou a doze centros automotivos nesses moldes no país. Mas a virada veio mesmo em 1991, quando aproveitou a abertura às importações de veículos, no governo Collor, e criou a IVXM para representar a Citroën.
“Disseram que eu era louco, que carro francês não ia emplacar aqui”, lembra. Vendeu mais de 40 000 exemplares até 2000. No ano seguinte, a montadora decidiu se instalar no Brasil e o convidou para ser presidente da filial. Executivo da companhia e dono de concessionárias da marca, o jogo duplo funcionou até 2008, mas causou desgaste. “Eu estava dos dois lados da mesa, e não é uma situação comum. Comecei a ficar incomodado, e a Citroën também queria colocar um executivo francês aqui”, afirma.
Ao deixar a montadora, Habib passou a dedicar tempo integral a seu próprio grupo. O empresário acorda às 6 da manhã, após cinco horas de sono, e vai direto para uma sessão de uma hora de musculação e exercícios — em casa, com um personal trainer. Em seguida, parte para o escritório. No caminho, visita uma ou duas de suas lojas, escolhidas aleatoriamente. Chega sem avisar, causando surpresa entre os funcionários. Se a concessionária é da Citroën, usa gravata vermelha. Entra falando alto, movimentando seu 1,93 metro de altura com agilidade, puxa papo com todo mundo e até interrompe clientes para apontar que “este é meu melhor vendedor”. “Sou um cara de terreno. Gosto de cheiro de gente”, diz.
Quando se instala em seu QG, na Vila Leopoldina, o empresário continua conectado com o que ocorre nas concessionárias. Sua sala é uma espécie de centro de comando, com catorze monitores pendurados pelas paredes informando o andamento das vendas em tempo real. Entre pacotes de biscoito salgado, caixinhas de água de coco e livros sobre a China espalhados pela grande mesa, ele acompanha os gráficos com atenção. A cada três minutos, em média, o ícone de um carrinho pisca em alguma das telas. Isso significa que Habib vendeu mais um durante o expediente de trabalho. No decorrer de um mês, esse sinal se repete umas 4 500 vezes; em um ano, chega a cerca de 50 000. Em um dos monitores, o destaque é um ranking com nomes de pessoas.
São os “top guns”, os quarenta melhores vendedores do grupo, que competem por viagens à Disney ou a Cancún como prêmio pelo desempenho. Essa turma é acompanhada de perto pelo chefe, que elogia e cobra em e-mails com textos do tipo: “Showww! Supermegaparabéns!” ou “Vamos lá, você está com cinco vendas neste mês, mas confio que vai melhorar”. “Ele já me mandou e-mail às 6 horas da manhã”, conta Kátia Cabral, a “top gun” número 1, com média de 21 vendas por mês.
A vigilância constante tem um vilão: o celular. Habib passa quase todo o tempo grudado a um de seus três aparelhos — um BlackBerry, um iPhone 4 e um Nextel. Quando está em seu Citroën C6, nunca ouve música, só dirige conversando em um fone com Bluetooth. Fora dele, envia e responde, em média, 300 e-mails por dia pelo dispositivo móvel, até a hora de se deitar na cama, em sua espaçosa casa na Avenida Morumbi.
Alguns anos atrás, tinha o costume de ler uma vez por semana, geralmente biografias de personalidades como o ex-tenista Andre Agassi, o megainvestidor Warren Buffett e os líderes Bill Clinton e Tony Blair. Com a entrada dos aparelhos em sua vida, a leitura ficou relegada a uma vez por mês. “O BlackBerry matou minhas horas de folga. Só desligo a ‘torre de controle’ às 23 horas, senão tenho problemas com a minha mulher”.
Ela é Sandra Habib, de 53 anos, figura frequente em colunas sociais. Dona da loja de decoração Benedixt, nos Jardins, e responsável pelo comando das concessionárias da Jaguar e da Aston Martin, Sandra costuma literalmente parar o trânsito a bordo dos dois esportivos de luxo britânicos — sempre acompanhada de um batalhão de seguranças. Como tarefa extra, administra o visual do marido. “Até cueca eu compro para ele”, diz a mineira de Belo Horizonte. “Nem sei o que tem no meu guarda-roupa”, admite Habib.
Moda realmente não é o ponto forte do empresário. Em 2004, numa rara incursão fora do universo dos automóveis, ele e Sandra abriram sete lojas de roupas em parceria com o estilista Ocimar Versolato. O investimento declarado foi de 15 milhões de reais, mas o negócio durou apenas seis meses e terminou com a publicação de um ressentido livro do estilista (‘Vestido em Chamas’) com duras críticas aos ex-sócios. “Ele falou um monte de coisas, mas estava perdendo dinheiro e achei melhor fechar. Só isso”, rebate Habib.
Quando está em São Paulo, o casal, unido há dezesseis anos, tem pouco tempo para o lazer. Os raros momentos são aproveitados em jantares em família. Juntos, têm sete filhos — quatro de Sergio e três de Sandra, de casamentos anteriores — e três netos; o quarto chega em março. Os encontros costumam ocorrer no restaurante italiano Vecchio Torino, em Pinheiros. Como cliente especial, Habib tem direito a pedir um prato que não figura no cardápio, o fettuccine à carbonara. Nessas reuniões, uma presença constante é Charlie, um west highland white terrier de 5 anos. Durante as refeições, o cãozinho permanece embaixo da mesa, geralmente escondido dos outros clientes, saboreando um polpettone (também fora do menu).
“Ele fica quietinho e ninguém percebe porque a toalha é comprida. Normalmente não permitimos animais, só o Charlie pode”, confidencia a proprietária Manuela La Rosa. O cachorro — estrela de recente campanha publicitária do portal IG — acompanha o dono até nas viagens de negócios. Em seu processo para trazer a JAC, Habib tem ido à China todo mês, desde o ano passado. Charlie foi junto em seis ocasiões, geralmente com sua mala Louis Vuitton a tiracolo — sim, o cachorro tem uma mala só para seus brinquedos e coleiras de grife (ao todo, 400).
Duas vezes por ano, o empresário faz uma viagem de férias. Janeiro é sempre reservado para a estação de esqui de Aspen, no Colorado. Uma vez por mês vai a Trancoso, na Bahia, onde desde 2004 possui uma mansão na Praia dos Nativos, com uma casa principal e cinco bangalôs independentes. Piloto desde os 16 anos, época em que voava de planador, Habib eventualmente vai ao litoral nordestino no comando de seu Cirrus, monomotor com preço médio de 760 000 reais.
É na vila, parte do município de Porto Seguro, que o empresário tem seus principais momentos de diversão. Anda de quadriciclo motorizado, faz caminhadas em trilhas, frequenta o Quadrado — praça que é o point da região — e janta no restaurante O Cacau. Lá toma caipirinha de tangerina e pede o agarradinho com purê (carne de sol e purê de banana-da-terra frita com mel), prato que sai por 55 reais, o mesmo valor que costuma deixar de gorjeta para o garçom Sândalo Miranda, que sempre o atende.
Habib não resiste e dedica, inclusive nos fins de semana, uma parcela de seu tempo aos automóveis. Entre sábado e domingo, responde a cerca de 500 e-mails e participa de conferências pelo celular. “Domingo é o dia em que mais se vende carro em São Paulo e é reservado para as grandes operações de marketing nas concessionárias. Mesmo quando está fora em Trancoso, ele fica monitorando essas ações”, diz o francês Olivier Van Ruymbeke, presidente do grupo SHC. Amigos há mais de quinze anos — o executivo foi diretor internacional da Citroën até 1998 —, os dois mantinham contato mesmo quando moravam em continentes diferentes. Sempre que Sergio ia a Paris, a dupla passeava pelo Bois de Boulogne para conversar. Sobre carros, claro.
A relação com Paris não se limita a essas visitas passadas e à representação da marca gaulesa. Habib é filho de judeus franceses — o pai, Robert, de ascendência turca, era dono de uma pequena fábrica de plásticos; e a mãe, Raymonde, de família russa, foi secretária do cônsul da França em São Paulo por vinte anos. Ele estudou no tradicional colégio franco-brasileiro Liceu Pasteur, na Vila Mariana, e na juventude dava aulas particulares de matemática e física na língua de seus pais. “Até hoje eu faço contas e sonho em francês. Sou absolutamente bilíngue”, diz.
A origem judia o fez passar por todas as cerimônias obrigatórias, mas hoje ele não frequenta sinagogas e, entre amigos, até conta piadas sobre a religião. A verdade é que seu interesse exclusivo já estava focado desde a infância. Aos 10 anos de idade, gastava horas em leituras obsessivas da revista QUATRO RODAS, da Editora Abril, decorando tudo sobre os modelos das décadas de 60 e 70. Naquela época, praticamente não tocava no autorama que tinha no quarto. Ironicamente, passaria o resto da vida “brincando com carrinhos”.
O PLANETA CARRO, SEGUNDO SERGIO HABIB
– “Alemão é presunçoso por causa da indústria, não dá para ler as revistas especializadas”
– “Americano gosta de banheiras (aqueles carros compridos)”
– “Brasileiro curte suspensão dura, não suporta ruído e prefere interior escuro”
– “Chinês não dá valor a contrato. Quando assinei com a JAC, não tinha nem advogado presente”
– “Francês é sempre grato pelo que você fez, a Citroën não queria me dispensar”
– “Inglês é lento demais para nomear representante. Demorei dois anos para conseguir trazer a Jaguar”
O CADERNO DE METAS
Habib tem um caderninho em que registra, de cinco em cinco anos, os objetivos de sua vida para a próxima meia década. Começou em 1983, quando tinha 25 anos. Foi para cumprir uma das anotações que ele deixou a presidência da Citroën, em 2008. Mas, em geral, a margem de acerto de seus planos costuma ser muito pequena. “O principal é que esse caderno me faz tomar cuidado comigo, me tira da zona de conforto.”