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Corinthians vence a Libertadores com apoio da torcida

Como um autêntico 12º jogador, a Fiel mostrou sua força e empurrou o time para a conquista inédita

Por Pedro Henrique Araújo
Atualizado em 27 dez 2016, 17h38 - Publicado em 6 jul 2012, 13h27

Craque absoluto até hoje na arte de enxergar o futebol além das quatro linhas, o escritor Nelson Rodrigues (1912-1980), depois de um triunfo histórico do Corinthians sobre o seu time de coração, o Fluminense, em 1976, dentro do Maracanã, na semifinal do Brasileiro daquele ano, desenvolveu uma tese em uma de suas crônicas. Ele estava fascinado com a força da Fiel, que invadiu o Rio de Janeiro e dividiu o estádio com a torcida da casa: “Não se improvisa uma vitória. Vocês entendem? Uma vitória tem de ser o lento trabalho das gerações. Até que, lá um dia, acontece a grande vitória”.
Na noite da última quarta, o bando de mais de 40.000 loucos presentes ao Pacaembu testemunhou uma conquista que começou a ser forjada há 35 anos, quando a equipe fez sua estreia na Copa Libertadores, a principal competição entre clubes das Américas. Em 1977, os alvinegros não passaram da primeira fase. Nas oito edições posteriores de que participaram, acumularam novos fracassos. Para piorar as coisas, nesse meio tempo viraram motivo de gozação ao ver seus principais rivais levantar o caneco — o São Paulo em 1992, 1993 e 2005, e o Palmeiras em 1999.
A situação só aumentou o desejo de um dia levar a taça para a gloriosa sala de troféus do Parque São Jorge. O sonho transformou-se em obsessão, o que explica a catarse com clima de Copa do Mundo que tomou conta da cidade após o elenco comandado pelo técnico Tite superar o Boca Juniors, da Argentina, por 2 a 0, numa linda noite de lua cheia (para os mais místicos, um presente enviado dos céus por São Jorge, o padroeiro do clube).
O grito represado de campeão ecoou além dos muros e colunas em estilo art déco do Paulo Machado de Carvalho, onde os preços dos ingressos chegaram a alcançar cotações de até 20 000 reais no câmbio negro. Ele pôde ser ouvido também com força no Anhembi, local de concentração de cerca de 30.000 pessoas, que pagaram de 20 a 250 reais para acompanhar os lances em três telões, nos bares da Vila Madalena, nas esquinas da Avenida Paulista, nos rincões mais distantes da Zona Leste e em quase todos os cantos da metrópole.
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A maior parte dos membros da nação formada por 30 milhões de seguidores, dos quais, estima-se, 15% são moradores da capital, colecionava histórias de longas jornadas pessoais até a chegada do grande dia de gala. O engenheiro Fernando Hasil, de 58 anos, estava entre os que atravessaram a Via Dutra para ver o elenco brilhar em 1976 contra o Fluminense, na epopeia que ficou conhecida como “Invasão do Maracanã” e fascinou Nelson Rodrigues — além do Brasil inteiro, diga-se. Ao término da decisão contra o Boca, o veterano das arquibancadas quase chegou às lágrimas num dos assentos do tobogã.
Membro de uma família alvinegra fanática, o cardiologista Sérgio Timerman, 54, chegou certa vez a inventar um plantão no hospital para despistar a noiva e poder partir tranquilo para ver uma partida contra o Cruzeiro em Belo Horizonte, nos anos 80. A exemplo do que fez em todas as outras pelejas da Libertadores disputadas no Pacaembu, ele marcou presença na final. “Está provado que as emoções no campo aumentam o risco de um infarto”, brincava ele.
A analista tributária Tânia Scaffa e Adura, 37, repetiu o ritual de sempre: passou os noventa minutos colada no alambrado até a explosão final de alegria. Na semana anterior, diante da notícia da chegada do time à decisão, interrompeu as férias em Barcelona, pegou um voo para São Paulo (“para apanhar minha camisa do Corinthians, pois na mala que levei à Espanha só tinha shortinho e biquíni”) e, na sequência, embarcou rumo a Buenos Aires, onde acompanhou o empate de 1 a 1 na primeira final. “Foi a maior loucura que já fiz pelo Timão”, conta ela, que já havia mandado tatuar no ano passado um brasão antigo do clube no pulso esquerdo.
Cerca de 5.000 loucos, como ela, estiveram na capital da Argentina na ocasião. “O lugar reservado aos brasileiros era tão pequeno que ninguém tirava o pé do chão, pois podia perder o espaço”, lembra um desses corajosos, o caminhoneiro Eduardo Cesar Caetano, 38, campeão de compras do Fiel Torcedor, o cartão do Corinthians que oferece facilidades na aquisição de ingressos. Somente na competição sul-americana, Caetano gastou quase 500 reais em entradas. Às vésperas de cada embate em São Paulo, encerrou mais cedo o expediente, cancelando por conta própria as entregas programadas. “Depois, recuperei tudo, trabalhando dobrado”, explica. “Faço tudo por essa paixão.”
Embora tenha demorado 35 anos para ocorrer, a vitória no torneio internacional, quando chegou, veio em grande estilo. Desde a final com o Santos, em 1963, o tradicional Boca Juniors, um dos maiores bichos-papões da competição, com seis títulos conquistados, não perdia uma decisão para um adversário brasileiro. Além disso, o Corinthians terminou a campanha invicto, algo que não ocorria desde 1978, quando o mesmo time argentino havia alcançado essa proeza. Na semifinal, eliminou o Santos, do badalado craque Neymar, campeão da edição anterior.
Entre os guerreiros do Parque São Jorge, há vários bons jogadores, como o raçudo zagueiro Leandro Castán, o cerebral meia Danilo e o explosivo atacante Emerson, autor dos dois gols da decisão. Eles formaram uma equipe coesa, entrosada e batalhadora, mas sem grandes estrelas. Foram catorze partidas. Das sete disputadas fora de casa, obteve apenas duas vitórias. Esse desempenho mudou radicalmente no Pacaembu, onde o time venceu seis jogos e empatou um. Grande parte da explicação para o fenômeno vem das arquibancadas. “Os torcedores foram fundamentais na conquista”, afirma o treinador Tite, um dos maiores responsáveis pelo êxito corintiano. “Eles são diferentes de tudo o que eu já vi.”
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A Fiel agiu, de fato, como um 12º jogador, destacando-se pela presença massiva (média de 33.000 pessoas por jogo, a melhor da Libertadores entre os brasileiros) e por seu comportamento, mais passional do que nunca. Pela primeira vez na história, as maiores organizadas firmaram um pacto de modo a unir numa só voz os cânticos durante as partidas, a fim de amplificar a dose de incentivo aos jogadores no gramado. Antes do apito inicial, seus líderes distribuíam papeletas com a ordem dos hinos e dos gritos de guerra.
“Todos os gringos que eu levo ao estádio não prestam atenção na partida, apenas ficam olhando a galera fazer festa”, diz o executivo Rod Chalaby, 32, um inglês que entrou para o bando de loucos em 2009, três anos depois de sua chegada a São Paulo. Ocorreu também um pacto informal de não agressão aos atletas. Qualquer vaia era imediatamente reprimida pela massa. Valia apenas aplaudir e incentivar.
No duríssimo combate com o Vasco em São Paulo pelas quartas de final, ocorrido em maio, numa cena insólita, os fieis acolheram nas numeradas o técnico Tite, quando este foi expulso de campo. “Eles tentavam me ajudar a fazer chegar ao gramado as orientações que eu berrava ali de cima”, conta o treinador. No momento em que o volante Paulinho marcou o gol da vitória, aos 42 minutos do segundo tempo, a cena em que o jogador sobe o alambrado para abraçar um torcedor anônimo e comemorar junto a ele pareceu uma sequência lógica do alto nível de entrosamento entre as arquibancadas e a equipe.
Ao término desse capítulo da epopeia, gente como o editor de vídeo Gustavo Forti Leitão, 27, deixou o estádio com a obrigação de pagar promessa pela graça alcançada. “No meio do sofrimento, disse a mim mesmo que iria a pé do bairro da Saúde até o de Itaquera se saíssemos de lá vitoriosos”, relata. Segundo ele, foram quase 23 quilômetros vencidos na sola de sapato em mais de quatro horas de caminhada, tendo como ponto de chegada a nova terra santa dos alvinegros, o canteiro de obras do futuro estádio corintiano.
Ao longo da história, a torcida se destacou das outras nos momentos mais difíceis. Nada mais emblemático do que o jejum entre 1955 e 1977, longo período que pareceu interminável para quem o viveu, da maior seca de títulos expressivos do clube. Surpreendentemente, a massa encorpou na fase de vacas magras, distanciando-se em tamanho das outras rivais da cidade (de acordo com um levantamento recente do Datafolha, os corintianos representam hoje 37% dos torcedores paulistanos, contra 22% de são- paulinos, 14% de palmeirenses e 6% de santistas). Naqueles tempos de tantas lágrimas e frustrações, a mística do sofredor incapaz de abandonar sua paixão ficou para sempre colada à imagem da agremiação, um sentimento representado na época em músicas como “Amor Branco e Preto”, de Rita Lee (“Por que será que eu gosto de sofrer? Vai ver que agora eu dei pra masoquista. Meu amor branco e preto às vezes me deixou na mão. Mas eu gosto de você”).
O comportamento continuou se repetindo. Em 2008, o ano seguinte ao do rebaixamento do time para a série B do Campeonato Brasileiro, a equipe bateu recordes de público e os fãs vibraram ao final da temporada com a volta do clube à elite. “Torcedor comum gosta de futebol, enquanto o corintiano gosta é de Corinthians”, afirma o jornalista Vitor Guedes, autor do livro “Paixão Corinthiana”, lançado em janeiro.
A mesma paixão que a Fiel dedica aos seus craques, porém, muitas vezes se transforma em fúria quando a voz rouca da massa entende que o time não se esforçou o suficiente durante uma exibição. Maior torcida organizada do clube, a Gaviões da Fiel, com aproximadamente 70.000 sócios, costuma marcar presença nos episódios mais violentos e já arrumou confusão até fora do futebol, durante as apurações dos resultados dos desfiles das escolas de samba paulistanas no Anhembi. Na comemoração do título, já na madrugada de quinta, um bando entrou em choque com um batalhão da Polícia Militar na Avenida Paulista. No ano passado, não suportando a humilhação de ver a equipe eliminada pelos colombianos do Tolima na fase preliminar à disputa da Libertadores, vândalos invadiram o centro de treinamento do time e depredaram os carros dos jogadores e o do técnico Tite.
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Curiosamente, numa reviravolta espetacular, o mesmo vexame contra o Tolima ajudou a construir o atual elenco vitorioso. Tite permaneceu no comando em 2011 e, na sequência, levou o título brasileiro. A base de atletas foi mantida para a bem-sucedida campanha da Libertadores. Conquistas como essa costumam gerar um ciclo virtuoso: multiplicam o número de torcedores, aumentam a visibilidade da agremiação e atraem mais recursos financeiros, o que ajuda a manter os principais craques e contratar reforços. Os guerreiros alvinegros saíram do Pacaembu com a medalha no peito conscientes de que terão para sempre a gratidão da Fiel.
Veteranos de outras campanhas sabem bem como funciona essa ligação eterna. O meia Basílio, conhecido como Pé de Anjo por marcar o gol do fim do calvário em 1977, perdeu a conta do número de festas realizadas em sua homenagem. Outro ídolo, Neto, craque do primeiro título brasileiro, em 1990, hoje atuando no papel de comentarista, também não foi esquecido. “Mais de vinte anos depois daquela final, não passa um dia sem que alguém me pare na rua para agradecer a conquista”, conta. Basílio, Neto e muitos outros acabaram recebendo mais idolatria depois de pendurar as chuteiras. “O jogador, para se tornar ídolo no Corinthians, precisa se aposentar”, diz o atual vice-presidente do clube, Luis Paulo Rosenberg. “O maior herói de toda a história corintiana sempre foi e sempre será a torcida.”
Há uma frase atribuída ao falecido jornalista José Roberto de Aquino, então assessor de imprensa do clube, que se tornou uma espécie de mantra para explicar o fenômeno: “Todos os times têm uma torcida. O Corinthians é uma torcida que tem um time”. Para o publicitário Washington Olivetto, a sentença representa uma das melhores definições sobre esse caso de amor incondicional. “O Corinthians é o clube que mais tem a síntese da mistura. São as mais variadas classes sociais, econômicas e raciais”, afirma.
Na gloriosa, emocionante e épica madrugada da última quinta, cada um dos membros dessa ruidosa multidão foi dormir com um sorriso orgulhoso no rosto e a sensação de missão cumprida. “Dizem os idiotas da objetividade que torcida não ganha jogo. Pois ganha”, escreveu Nelson Rodrigues, na mesma crônica sobre a “Invasão do Maracanã”. Parecia também profetizar ali os acontecimentos de 4 de julho de 2012 — já apelidado de o Dia da Libertação da Fiel.
A FORÇA DA FIELNúmeros relacionados ao time e à legião de adoradores do novo campeão:
30 milhões é o tamanho da torcida corintiana, quase o dobro da que tem o segundo colocado no estado, o São Paulo. Cerca de 81% dos devotos do time do Parque São Jorge estão concentrados em território paulista.
90.000 é o número de carteiras de associados do programa Fiel Torcedor, que oferece facilidades na compra de ingressos e artigos do clube. É o melhor desempenho entre as agremiações paulistas que mantêm iniciativas semelhantes.
33.000 é a média de público da equipe na Libertadores, a maior dos brasileiros no torneio.
7 milhões de reais foi a quantia arrecadada pelo time em patrocínios pontuais na camisa durante as últimas partidas do campeonato sul-americano.
290 milhões de reais foi o faturamento do Corinthians em 2011, segundo a empresa de auditoria e consultoria BDO. Pelo terceiro ano consecutivo, obteve o melhor desempenho em receita entre os clubes nacionais.
GOLEADA NO ARAs transmissões dos jogos da equipe na Libertadores foram as recordistas de audiência no futebol na TV nesta temporada*:
23/5
Corinthians x Vasco – 34 pontos
13/6
Santos x Corinthians – 40 pontos
20/6
Corinthians x Santos – 41 pontos
27/6
Boca Juniors x Corinthians – 42 pontos
4/7
Corinthians x Boca Juniors – 48 pontos
*Cada ponto no Ibope equivale a 60.000 aparelhos ligados na Grande São Paulo

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