“Trabalhamos juntos na linha de frente contra a Covid-19”
Aristelma Andrade (Telma), 43 anos, em depoimento a Fernanda Campos Almeida
Eu e meu namorado, Clodoaldo, 49, trabalhamos no pronto-socorro do Hospital Municipal Dr. Ignácio Proença de Gouvêa, na Mooca, referência para casos de internação hospitalar pelo novo coronavírus. Sou técnica de enfermagem e ele é auxiliar de enfermagem, e estamos na linha de frente contra a doença.
Eu o conheci em outro emprego, na área de saúde da Fundação Casa Vila Conceição (antiga Febem), em 2010. Trabalhávamos em plantões opostos, mas um dia o colocaram no meu horário. Ele gostou de mim e eu sabia da fama de galanteador que tinha entre os funcionários. Tentei não me deixar levar, mas não teve jeito. Ele voltou a trabalhar no horário dele, anterior ao meu, e deixava bilhetinhos de bom-dia no meu cartão de ponto. Parecíamos dois adolescentes.
Começamos a conversar pelo Orkut e, um ano depois, ele passou a trabalhar comigo permanentemente. Ficamos próximos e, após diversas tentativas de me levar para sair, acabei aceitando. Nosso primeiro encontro fora do trabalho foi em um bar. Em outro dia, depois do trabalho, ele foi até o terminal de ônibus comigo e se despediu com um beijo no canto da minha boca. Fiquei tão nervosa que deixei os documentos que segurava caírem no chão.
Ficamos enrolados até 2014, quando prestei concurso para o hospital e passei. Passados três meses, ele decidiu tentar e foi aprovado também. Na nossa área, os novos funcionários ganham um padrinho ou madrinha, que ensina a rotina do hospital. Por coincidência, entre tantos departamentos, ele foi parar no pronto-socorro junto comigo e me escolheram como sua madrinha. aí o namoro engatou de vez.
Quando a pandemia começou, foi desesperador. No início recebíamos apenas dois kits com equipamentos de segurança — touca, óculos de proteção, máscara N95 (recomendada aos profissionais da saúde), avental e luvas. Ficávamos das 7 até as 13 horas com a roupa, sem ir ao banheiro, para poder vestir o segundo traje depois do almoço.
Eu me infectei com Covid-19 duas vezes, em julho e setembro do ano passado. Na primeira vez, senti dor nas costas e falta de ar. Na segunda, só descobri que me reinfectei porque tivemos de fazer um dreno no tórax de um paciente. Saiu um líquido fétido forte e eu era a única da equipe que não sentia cheiro de nada.
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Fiquei afastada por quinze dias. Clodoaldo vinha até meu apartamento cuidar de mim e me trazer remédios. Ele teve contato direto comigo, mas não desenvolveu nenhum sintoma. Na época, ele fez quatro exames para detectar o vírus — todos deram negativo. Até hoje é uma doença misteriosa para nós
As pessoas brincam comigo que não conseguiriam trabalhar com o parceiro, mas, além de namorados, somos amigos e profissionais. Se estamos brigados, ninguém da equipe descobre, porque nos tratamos como colegas no ambiente de trabalho.
Há três meses ele se mudou para o meu apartamento. Depois de trabalhar por doze horas juntos, voltamos para a mesma casa como se nada tivesse acontecido no hospital. Como o trabalho é estressante, usamos esse tempo para relaxar. Escolhemos todas as nossas folgas no mesmo dia. Por mês, ficamos oito dias em casa, fazendo comida e assistindo a filmes. Não me vejo sem ele. Há tantos casais casados há anos mas que não estão juntos de verdade.”
Publicado em VEJA São Paulo de 20 de janeiro de 2021, edição nº 2721