Rafael Suriani, o artista que “cola” drag queens pelas ruas
Em livro independente, ele cataloga mais de 150 lambe-lambes de performers poderosas e purpurinadas
Aos 18 anos, o artista plástico Rafael Suriani teve seu primeiro contato com o mundo das drag queens. “Tinha acabado de sair do armário e fiquei completamente fascinado por elas na balada A Lôca”, relembra o paulistano, hoje com 37 anos. A forma precisa como manejavam a maquiagem o deslumbrava, mas o encanto delas superava o apelo visual. “Elas me ensinaram, com suas perucas e roupas, que a feminilidade não é natural, e sim construída.”
A transformação da admiração em matéria-prima para a arte demorou, mas vingou. Em 2013, Suriani iniciou a série Street Queens, que já espalhou mais de 200 lambe-lambes de drags pelo planeta. Nesta semana, ele lança um livro homônimo com mais de 150 fotos dessa produção.
Para levantar fundos para a publicação independente (à venda por 65 reais no site suriani-art.com e também na livraria Tapera Taperá, na República), realizou uma campanha de financiamento coletivo. O objetivo era conseguir 17 000 reais, mas as 185 doações que recebeu ultrapassaram a soma inicial e chegaram a quase 22 000 reais. A popularidade do projeto na internet deu eco à receptividade que o provocativo trabalho conquistou nas ruas.
Em Paris, onde lançou Street Queens, Suriani fez sua primeira performer de sobrancelhas arqueadas e gestos marcantes em uma intervenção coletiva, capitaneada pela associação Act Up. “Depois de pensar bastante, decidi criar um lambe da Divine, musa do Pink Flamingos”, afirma ele. A personagem do filme trash, roteirizado e dirigido por John Waters, causou uma revolução em sua vida.
Quando cursava o mestrado em arte contemporânea e novas mídias na Universidade Paris 8 Vincennes — Saint-Denis, Suriani trabalhou na revista mensal Le Moniteur, que trata de assuntos relacionados a arquitetura, entre outras publicações. Pelas ruas, ele já imprimia sua marca, mas principalmente com animais híbridos, como os vistos na série Urban Jungle. Nela, uma raposa, por exemplo, ganha um corpo esguio, roupa preta colada e ares de roqueira. Foi com Divine, porém, que o artista escolheu a bandeira que defende até hoje.
De volta a São Paulo, em 2017, passou a adotar o mesmo processo de produção que funcionou em Paris e Nova York, onde também deixou estampados seus trabalhos. Ao som de house e pop, Suriani cria o desenho da protagonista da vez. Por meio de um projetor, ele lança o esboço sobre um pedaço de papel sulfite, que, às vezes, alcança mais de 2 metros de altura. Depois, com agilidade, usa canetas do tipo Posca e tinta acrílica para dar expressividade às personagens. Nessa fase, ressalta traços e colore as roupas.
A rua é a reta final. Com um pincel e uma garrafa PET de 1 litro, na qual dilui cola em pó em água, afixa os trabalhos nos muros. “Sempre vai alguém comigo, normalmente meu namorado. Me pegaram uma vez aqui no Brasil, o que me fez parar de colar por um tempo. Mas depois retomei. Se acontecer de novo, a gente filma tudo. O risco faz parte do meu trabalho”, reflete.
No pacote do ofício nada convencional, o preconceito também aparece. Em 2017, em Araçatuba, no interior paulista, as drags de papel foram vandalizadas por manifestantes descontentes com a intervenção que acontecia dentro da terceira edição da Semana de Diversidade Sexual. Em reação a esse ato, simpatizantes dos lambes se mobilizaram e criaram novas drags.
No novo livro, que destaca algumas dessas peripécias, as fotos tiradas pelo próprio autor se somam a outras de Leandro de Moraes e Jéssica Dalla Torre. A relevância da obra toma maiores proporções com os textos do doutor em antropologia Vitor Grunvald e da psicóloga Draga da Quebrada, codinome de Duda Leão Luiz. Há também os depoimentos das performers Abba Cashier, Irmã Mary Poppers, Maldita Hammer, Malonna e Pamella Sapphic. Sua musa, Ikaro Kadoshi, aparece na capa e em sete fotos em páginas internas. “O Suriani é meu irmão artístico”, afirma Kadoshi.
Quanto à sensação de se ver nas obras, a performer expressa só gratidão pela decisão do artista de voltar os holofotes para seu universo, tantas vezes relegado. “O que fazemos no palco não nasce do dia para a noite, é resultado de pesquisas sobre moda, teatro e dança. Isso, sem falar do estudo de idiomas, como inglês e francês. É mágico quando uma pessoa valoriza nosso trabalho”, completa a drag.