Sombra remonta seu ‘Fantástico Mundo Popular’ no Riviera
Rapper paulistano mostra no palco segundo disco solo acompanhado por quarteto

Quando surgiu à frente do grupo de rap SNJ (sigla de Somos Nós a Justiça), um dos mais respeitados do país, nos anos 90, Sombra diversificou a cena com seu jeito irreverente de rimar. Versador habilidoso, o rapper de Guarulhos apresenta versões especiais de faixas do segundo registro-solo, Fantástico Mundo Popular, nesta quinta (5), na noite BRisa, do bar Riviera, acompanhado do quarteto Meno del Picchia (baixo), Max Sallum (bateria), Alen Alencar (guitarra) e Hugo Hori (sax).
Sucessor de Sem Sombra de Dúvida (2008), sua estreia solo, o álbum foi produzido por Marcelo Cabral e Daniel Bozzio, com apoio do coletivo Matilha Cultural (o mesmo que lançou Nó Na Orelha, de Criolo). Mixadas pelo produtor canadense Scotty Hard, as dez faixas do disco caminham sem tropeçar por ritmos do sertão e da Jamaica, costurando histórias numa linguagem própria, criativamente maluca, característica do MC. Na ficha técnica, aparecem também seus comparsas Minari Groovebox e DJ Ajamu, e os instrumentistas Kiko Dinucci, Thiago França, Maurício Badé e Daniel Ganjaman. Os rappers Rapadura e Rael da Rima e o cantor Jorge Du Peixe, da Nação Zumbi, fazem as participações especiais.
Nascido na Rua Voluntários da Pátria, na zona norte da cidade, Jorge Antonio Andrade de Jesus Santos, 37 anos, o Sombra, morou no Rio de Janeiro dos 4 aos 14 anos. Mas costuma mesmo é dizer que é “de Guarulhos”, onde passou a juventude. Filho de dois baianos, a dona Hermelinda e o seu Antonio, é pai de Pedro, 11. Há cerca de cinco anos, mudou-se para a região central, onde diz ser o seu lugar. Durante essa peregrinação, já foi pedreiro, garçom, montador de peças de caminhão e office boy até conseguir viver de música. “Tenho orgulho de dizer que há mais de dez anos eu sobrevivo do rap”, exalta.
Além dos trabalhos com o SNJ, dividiu voz com Sabotage (1973-2003) na faixa Cocaína, do clássico disco Rap É Compromisso (2000). Oito anos depois, veio a estreia solo, Sem Sombra de Dúvidas, que lançou os hits Razante Louco e Mano Eu Vou Ali Comprar Um Chá. Até o lançamento do último registro solo, fez shows com Edi Rock e KL Jay, dos Racionais MCs, e integrou o 4 Naipes, projeto que envolve Rappin Hood, Sandrão e Tio Fresh.
Abaixo, Sombra conversa com a VEJASAOPAULO.COM sobre sua caminhada, inspirações e o novo disco:
VEJASAOPAULO.COM – O que te despertou para o rap?
Sombra – Eu escutava muito o que os meus pais e meus tios botavam para tocar no fim de semana naquelas reuniões de amigos, vizinhos e parentes. E a gente foi cultivando de tudo: era Sandra de Sá, Amado Batista, Roberto Carlos, Jorge Ben. Com o tempo eu conheci mais a fundo a black music de fato, o rap como trilha sonora do hip-hop. Fui vendo que o movimento tinha a ver com meu estilo de vida, com meu modo de pensar. Eu aderi às ideias e comecei a cantar sozinho, para os amigos nas festinhas do bairro, na festa do casamento do amigo, no aniversário do primo. E aquela coisa foi ganhando corpo, eu vi que levava jeito para isso, comecei a fazer parte. Foi então que eu conheci o pessoal do SNJ. Ali nesse começo eu ouvia muito Thaíde, Ndee Naldinho, Pepeu, Sharylaine. Depois eu comecei a ouvir uns raps muito mais politizados: Sistema Negro, DMN, Consciência Humana. A obra deles me motivava a escrever com mais coesão e coerência, a escrever sobre o que acontecia dentro da sociedade.
Como você moldou o seu estilo de rimar? Eu achava os raps muito semelhantes uns aos outros, as levadas, as batidas, principalmente. E comecei a pensar em como fazer um rap diferente. Eu já ouvia um pouco de tudo, rock’n’roll e música erudita, inclusive. Acordava cedo nos domingos e via na TV os tenores Plácido Domingo, Luciano Pavarotti. Eu achava muito louco e quis incorporar isso nas minhas cantigas de rap, no meu jeito de cantar, tremer a voz. Eu comecei a pesquisar e a testar, vi que levava jeito para fazer algo semelhante –porque não chega nem aos pés deles, claro. Misturei isso no flow, junto com umas batidas inovadoras também. Por exemplo, nossa primeira música do SNJ, Mundo da Lua, o sample tem batida de rap misturada com melodias de música clássica. Acho que isso deu um tom inovador, a galera chamava de estilo freestyle, estilo livre, na época.
Como foi a reação dos outros MCs na época? Alguns acharam legal e inovador, outros acharam que não ia dar em nada, que eram só mais uns caras querendo inventar coisa dentro do hip-hop. A gente deu continuidade ao nosso trabalho com segurança, acreditando no que a gente estava fazendo.
Você passou um período fora do SNJ, mas, recentemente, retomou as atividades com os parceiros. Qual a importância do grupo para você? O SNJ, como muitos outros grupos, uma hora estagnou. Talvez a gente tenha ficado meio sem noção do que fazer dali por diante. E cada um deu um segmento ao seu trabalho. Mas o SNJ significa tudo. Significa conhecer o Brasil, conhecer o mundo sem ter viajado para fora. Se hoje sou conhecido como Sombra, é por causa do SNJ. É minha origem. Foi um resgate para nós todos do grupo se reunir de novo. Estamos ajudando o Cabeça com os problemas que ele teve com drogas, tentando fazer com que ele acredite que há uma possibilidade de fazer parte da sociedade de novo, trabalhando com o rap, sobrevivendo da música.
E por falar em origem, de onde vem o apelido? Quando eu morava na Praça Oito, em Guarulhos, no Taboão, bairro lá da região, na época da juventude, tinha um parceiro que se chamava Paulo, e era o neguinho que eu mais gostava. O apelido dele era Fuminho. A gente só andava junto. Aí os moleques começaram a questionar: “Mano, Fuminho vai para o trampo, você vai para o trampo com Fuminho, Fuminho está na casa dele, você está junto, ele pega uma mina, você pega a amiga dela e saem os dois de rolê junto. Que isso, você é sombra do Fuminho?”. E eu lembro de dizer: “Que sombra, o quê, meu nome é Jorge! ”. Apelido pega quando você não gosta. Na época eu já cantava rap, fui MC Black, depois Edi Black. Com o tempo eu comecei a aceitar. “Na quebrada eu sou Sombra, então eu vou ser o Sombra.” Já era. Assumi isso e sou o Sombra até os dias de hoje. Fuminho é finado. Ele era do trâmite da periferia, a criminalidade acabou afastando e levando o mano da gente. Espero que ele esteja numa melhor.
Por que você veio morar no centro? Eu escolhi morar no centro porque eu sou o centro. Eu acho que tudo está aqui, assim como tudo também está na periferia. Eu sou capital, eu sou São Paulo. Eu me apeguei muito a esse lance de ter nascido na Rua Voluntários da Pátria. Se eu sou da cidade eu tenho de estar lá. Eu moro na Avenida Nove de Julho, próximo ao metrô Anhangabaú. Você bota a cabeça para fora da janela e vê uma pessoa ajudando outra aqui, um cara passando por cima do mendigo ali. É uma selva de pedras.
E é tudo combustível para os seus versos… Eu me apego muito ao cotidiano, e as minhas músicas vêm disso. É o que eu leio no dia a dia em diferentes mídias, da placa da loja até o panfleto que você bate o olho no chão. Desde uma balada que eu frequento, uma coisa que uma pessoa fala, uma música que eu ouço, desde o boteco que eu participo ali com os tiozinhos tomando uma breja e eles falam uma coisa engraçada. Tem gente que me propõe um tema e eu desenvolvo. Eu costumo guardar na mente, não sou muito de anotar, senão acabo me perdendo nas ideias. Eu vou juntando teco por teco e fico decorando parte por parte. É um exercício para mente. Às vezes falha, mas comigo funciona assim.
O Fantástico Mundo Popular, seu segundo trabalho, reúne uma série de crônicas sobre esse mundo que você vê. Você já tinha em mente reunir essas histórias em um segundo disco? Sim, eu já tinha essa ideia desde o Sem Sombra de Dúvidas, de 2008. Para mim, cada música tem que ter um tema. Não adianta eu fazer um disco de quinze faixas sendo que dez falam da mesma coisa de maneiras diferentes. Senão o artista vai estagnar. Você precisa ter um diferencial na escrita, nos títulos. Tem que misturar as ideias com começo, meio e fim para o disco fazer sentido.
Os personagens são interessantes. Quem é o “homem sem face”? É aquela pessoa má, sem caráter, sem honra, sem dignidade, sem personalidade. A gente vê muito por aí no país. [Veja abaixo o clipe da música O Homem Sem Face]
Quando o álbum começou a ganhar corpo? Assim que eu coloquei na rua o primeiro disco, eu já comecei a escrever essas músicas do Fantástico Mundo Popular. Vim amadurecendo várias ideias. Na reta final convidei três pessoas para participar do disco, que foram o Rapadura, na música Chuva de Gente Estranha, e o Rael da Rima e o Jorge Du Peixe, do Nação Zumbi, na Mano Eu Vou Ali Comprar um Chá – Parte 2. Conheci os produtores, Daniel Bozzio e Marcelo Cabral na noite, indo a shows de outros grupos com os quais eles tinham algum envolvimento. Com eles demos continuidade ao trabalho, entramos em estúdio em novembro de 2011. Eu já tinha sete faixas escritas, três eu terminei no processo de gravação do disco. Eu já tinha alguma coisa em pré-produção, feita pelo Minari, um cara que acompanha a gente em show e também assina produção desse disco.
O seu som é um bem-bolado de sertão com Jamaica, com base no rap. Quais são as suas influências? Reggae, ragga, maracatu, samba, pagode, funk carioca [dos 4 aos 12 anos de idade, morou em Visconde do Itaboraí (RJ), e até os 14, em São Gonçalo (RJ)], funk de São Paulo. Tudo o que está tocando e o tímpano dá atenção.
Você sempre traz o Nordeste para a sua música. Sempre. Por causa dos meus pais, da minha família, dos nordestinos da cidade. Agregar os ritmos regionais às batidas do rap é muito importante para valorizar o conteúdo do nosso país, para mostrar para as pessoas que a gente não se identifica só com o que vem de fora. É importante tornar a música mais nossa.
E de onde vem sua ligação com a Jamaica? Eu me identifico com o lifestyle dos jamaicanos, a fé e o credo, a erva também, por que não?. Não sigo o rastafári –eu sou um arrastado, na real [risos]-, mas eu admiro a religião, cultuo o penteado. Estou na terceira geração de rasta e comecei com rasta mesmo em meados de 1998. Da música eu curto muito Sizzla, Capital Letters, Bob Marley e Jimmy Cliff, pioneiro de um som que deu origem a tudo isso que a gente ouve por aí, como o ragga, um som mais pesadão com o qual me identifico muito.