Uma Boni no mercado das artes
A marchande Regina Boni, de 77 anos, investe em jovens nomes e consolida o conceito de galeria itinerante
A Galeria São Paulo Flutuante está com os dias contados. Pelo menos na Rua Estados Unidos, 2186, nos Jardins. O espaço de 350 metros quadrados, inaugurado em dezembro de 2018, deve fechar as portas até o fim de março e reabrir em outra casa, desta vez em Higienópolis, para reafirmar a concepção de nômade proposta por sua dona, a marchande Regina Boni. “Não quero me prender a conceitos ou estruturas físicas, por isso vou para outro imóvel, onde ficarei por mais um tempo, e, a seguir, eu me instalo em um novo bairro”, explica Regina, de 77 anos, que desde o começo da década de 80 é uma das galeristas mais influentes e polêmicas da cidade.
Gilda Vogt, Leopoldo Ponce e Pedro Boi estão entre os artistas agendados para 2020. Uma cláusula do contrato especifica a itinerância da galeria. “Faço curadoria pessoalmente, escolho e monto a exposição onde for melhor”, diz ela, que, à frente da Galeria São Paulo, entre 1981 e 2002, alavancou os nomes de Luiz Paulo Baravelli, Leonilson e Daniel Senise, entre outros.
O primeiro ano da Flutuante, apesar da crise, foi satisfatório. O artista Ucho de Carvalho vendeu 25 de suas trinta obras. Em sua individual de estreia, Rafael Maia Rosa também gerou interesse com aquarelas e vídeos. Os preços são razoáveis — partem de 2 500 reais e não ultrapassam os 12 000 reais. “São valores acessíveis tanto para jovens quanto para banqueiros”, explica a galerista.
Uma das apostas foi o fotógrafo baiano Rodrigo Sombra, de 33 anos, que registrou em quatro viagens a Havana olhares pouco óbvios sobre o povo cubano. Regina conheceu sua produção em 2017, por recomendação do cantor Caetano Veloso, e confessa que o desejo de expor suas fotos foi uma das motivações para montar um novo espaço. “Regina tem uma escuta fina para o entendimento do trabalho e demonstrou confiança total em mim”, declara Sombra.
Os elogios de convidados e críticos não foram proporcionais ao retorno financeiro. Sombra comercializou só uma de suas trinta imagens. A marchande não se abalou. “Sombra é muito moderno, e o colecionador de fotografia é ainda apegado ao tradicional, não compreendeu, uma pena.”
Quebrar convenções sempre foi com ela mesma. Filha de um latifundiário pernambucano e de uma médica mineira, Regina Helena Oliveira nasceu em Juiz de Fora (MG), foi criada no Rio de Janeiro e, no começo da adolescência, veio morar em São Paulo. Estudou no Colégio Sacré-Coeur de Marie, aprendeu a cozinhar com a avó mineira, tudo como manda o figurino.
Aos 17 anos, ela se casou com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, jovem promissor da comunicação, que se tornaria o poderoso diretor-geral da Rede Globo, e quando percebeu carregava nos braços os filhos Boninho e Gigi. A separação ocorreu cinco anos depois, pela incompatibilidade de gênios muito fortes. “Enquanto Boni sonhava em dirigir uma estação de rádio ou TV, eu queria fazer a revolução e afrontar os militares”, recorda ela, que voltou a viver com o ex-marido por um curto período em 1970.
Antes disso, em uma noite de 1967, Regina cruzou com a jovem Gal Costa, ainda de cabelos curtinhos, na casa de Chico Buarque, no Pacaembu, e emprestou à cantora um vestido estampado para que o usasse em um show.
Caetano Veloso lhe foi apresentado semanas depois e, encantada com a inteligência do rapaz, a moça impulsiva não controlou a língua: “Cara, suas roupas não têm nada a ver com seu discurso revolucionário”. Dedé Gadelha, então mulher do cantor, mandou Regina sugerir figurinos para o marido e, a partir dessa conversa, no apartamento dos tropicalistas na Avenida São Luís, começou uma nova história.
Rebatizada de Regina Boni por Guilherme Araújo, empresário de Caetano, Gil e Gal, ela, que até então não tinha uma profissão, passou a desenhar e cortar tudo o que os artistas usavam em shows e programas de televisão. Sua mãe, que estudou moda em Paris, ficou encarregada das costuras. “Ganhei espaço na mídia e todo mundo me procurava para comprar minhas roupas”, diz.
Na esteira dessa repercussão, Regina inaugurou a butique Ao Dromedário Elegante, na Rua Bela Cintra, onde comercializava saias e vestidos bem acima dos joelhos, calças justíssimas e marcadas no corpo, além de blusas transparentes que dificultavam o uso de sutiã.
Entre os clientes assíduos figuravam a cantora Wanderléa e o ator Sérgio Mamberti. “A loja carregava o mesmo espírito das grifes inglesas, que estavam impregnadas da contracultura, e Regina vendia tudo por um preço ao alcance dos jovens de todas as classes sociais”, relembra Mamberti, amigo da marchande até hoje, que chegou, inclusive, a realizar uma bem-sucedida exposição de suas colagens na Flutuante, em agosto passado.
Ameaças dos militares por causa de seus figurinos pouco convencionais levaram Regina ao exílio na Europa. Os filhos ficaram no Brasil com uma de suas irmãs, e a relação entre ela, Boninho e Gigi permaneceu estremecida durante anos. “Foi tão difícil fazê-los entender que a perseguida era eu, e seria muito egoísmo tirá-los do ambientes deles”, declara, ainda sentida.
Em Paris, foi moldada a personalidade da galerista ousada em estágios com os principais marchands, e, de volta, em 1980, a ex de Boni fez ferver a Galeria São Paulo. “Eu profissionalizei o mercado brasileiro e passei a deixar claros os dados que elevavam ou derrubavam o preço de uma obra de arte”, conta ela, sem modéstia, que colecionou inimigos e reconhece que, durante algum tempo, ficou deslumbrada com as relações de poder conquistadas.
Regina, porém, voltou para a terra e abraçou a maturidade como forma de agregar pessoas à sua volta. Adora cozinhar para os amigos em seu apartamento, em Higienópolis, frequenta shows e cinemas e, na época das eleições presidenciais de 2018, organizou jantares de apoio ao candidato petista, Fernando Haddad. Tem um namorado, mas prefere ocultar o nome dele.
A convivência com os jovens pode ser um segredo contra o cansaço. “Sou louca pelos meus sete netos e, assim, compenso a péssima mãe que fui”, admite. Uma de suas melhores amigas, acreditem, é a cantora Mallu Magalhães, de 27 anos, a quem define como uma jovem com cabeça de velha. “Sinto a visão de mundo da Regina como uma libertação de braços dados à beleza, e, quando você é livre e bonito ao mesmo tempo, se torna atemporal”, filosofa Mallu.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 8 de janeiro de 2020, edição nº 2668.