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Primeiras letras

Por Ivan Angelo
Atualizado em 5 dez 2016, 15h24 - Publicado em 6 dez 2013, 16h51

Como é que se renova uma safra de escritores? O começo, comecinho de tudo, qual é? Quando? Na infância? Se for, o que faz germinar a semente em uma cabecinha aqui, outra ali? Onde? Quando? No colo da mãe, no berço, nos enredos sonhados, na interpretação de sinais que adultos nem percebem? Nasce ao ver adultos debruçados sobre livros? — objetos cuja atração gozosa não se compreende quando se toca, pega, revira, rasga, mas que intrigam pelo mistério de ver alguém ficar olhando, olhando, olhando para aquilo, virando páginas…

Incompreensíveis objetos pedindo decifração. Que fascinações se acrescentam a esses objetos com a conquistada leitura, a chave? Como, em meio a tantos apelos, uma cabecinha infantil envereda pelo mundo das ficções escritas?

Essas perguntas me ocorrem quando vejo minha neta, de 9 anos, lendo um livro de 604 páginas. É a história de uma garota que está criando seu primeiro filme. A estrutura não é simples, para uma leitora de 9 anos. E pasmo: é o quarto volume! Já leu os outros três!

Eu, antes dos 14 anos e dos romanções de Alexandre Dumas e de Xavier de Montépin, nunca li e não conheço quem tenha lido uma história de 600 páginas. E olhe que era uma época sem televisão, jogos eletrônicos, internet, shoppings — quer dizer, tínhamos tempo. Alguma coisa mudou no mundo das crianças que leem.

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Bebel, é esse o apelido dela, além de ler, escreve. No ano passado escreveu um livro, que me mostrou com muitos segredos, e logo em seguida escreveu outro. Dois livros antes dos 9 anos! Na trama há muitos diálogos, curtos, de cortes rápidos, que ela usa com efeito narrativo, para movimentar a ação, e com isso evita a monotonia do narrador na terceira pessoa. Ela não sabe dessas coisas, por enquanto não importa.

É uma garota viajada, já esteve em Paris. Para lá fogem os protagonistas de uma das suas histórias, dois adolescentes apaixonados. Os manuscritos sumiram durante uma radical arrumação na casa, e ainda não foram encontrados. Não tem importância, diz ela, “eu escrevo outro”.

Bebel tem uns lances diferentes. Conto um. Houve um princípio de incêndio no prédio de apartamentos onde ela morava quando tinha 7 anos e os bombeiros pediram aos moradores que descessem com objetos e documentos que precisassem salvar. Bebel salvou seu caderno de lições para casa.

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Ela tem um herói / vilão prontinho, que ainda não usou nas suas ficções: o irmão. Um ano mais velho, ele acha que isso o torna mais preparado para a vida, ou senhor dos melhores truques. A questão dos estudos, por exemplo. Ele procura dar a ela dicas de como ser popular na escola, dissuadindo-a de estudar mais do que os outros: “Bebel, a gente não pode tirar muito A, porque aí ninguém quer ser amigo da gente. Tem de tirar mais é C, no máximo B”.

Até alguns anos atrás ela chorava por qualquer reivindicação, e no curso de uma dessas chantagens o irmão interveio: “Bebel, agora para. Amanhã eu ajudo você a chorar de novo”. Merece ou não merece um lugar nas tramas dela? Por enquanto, escrever histórias é uma brincadeira, um jogo. Quantos talentos não começaram assim?

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