“O desejo é o motor da vida”, declara Vera Iaconelli
A psicanalista revisita a infância marcada pelo casamento opressor dos pais e o alcoolismo paterno em novo livro, Análise, no qual mistura memória e reflexões

“Cada mulher que dá um passo em direção ao próprio desejo oferece uma chance para as demais.” Assim a psicanalista Vera Iaconelli, 60, descreve em seu recém-lançado livro, Análise (Zahar, 208 págs.), o alívio que sentiu após ver a escolha de sua mãe pela liberdade, mesmo aos 70 anos, após a morte de seu pai.
Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise e doutora em psicologia pela USP, ela oferece ao leitor suas memórias. Nas páginas, Vera escancara sua infância em uma família disfuncional de seis irmãos em meio à submissão da mãe ao pai alcoólatra, que era violento com os filhos e tinha uma outra família.
Ela revela os lutos que a marcaram ainda cedo, como a perda precoce de um de seus irmãos, o que a levou pela primeira vez ao divã, aos 17 anos, em uma desastrosa experiência de análise, em que a analista falava de sua própria vida.
O resultado do livro é um painel da história social e íntima de um determinado modelo de família um tanto comum em meados do século passado: que vivia à base de sacrifícios emocionais para permanecer unida, mesmo que despedaçada por traumas. Enquanto reflete sobre os acontecimentos, as angústias e seus sintomas, Vera traz lições preciosas de Freud, Lacan e companhia ao mesmo tempo que consegue, por vezes, se tornar um espelho para o leitor.
Na entrevista à Vejinha, ela conta também que está começando a trabalhar em seu próximo livro, que trata da nova mulher de 60 — como ela mesma é.
Durante a escrita do livro você enfrentou alguma espécie de autocensura em que temia se expor demais?
Foi mais uma resistência a nomear certos acontecimentos. É incrível como se pode viver uma experiência mas, ao nomeá- la, você a coloca dentro de um registro simbólico no mundo humano que tem um impacto. O pai era nervosinho, bravo, quebrava as coisas, gritava, mas quando falo violência doméstica é outra dimensão. O pai tinha uma amante com quem teve dois filhos, mas quando falo que ele tinha outra família também tem uma outra dimensão.
Como você se expõe tão publicamente no livro se na clínica preserva sua subjetividade?
A gente tem uma vida pública e tem todo o direito de viver isso. Passei trinta anos ajudando pessoas a assumirem seus desejos, não vou abrir mão do meu, de jeito nenhum. Mas o que está em jogo aqui é que na clínica eu posso me abster disso, não dar palpite, não moralizar o que as pessoas falam. Minha primeira analista não era uma pessoa pública, mas no consultório ela ficava falando dela mesma, foi um desastre.
A intenção com o livro foi iluminar leitores em seus próprios processos de análise?
Também. O valor da psicanálise nem sempre está onde a mídia aponta. Ela foi se tornando pop e falsamente acessível. Há uma banalização da psicanálise. Para mim sempre foi importante esvaziar aquilo que ela tem de idealização e valorizar aquilo que ela tem de potência.
Você escreve que há um certo caldo de cultura que nos faz entender que a psicanálise seria uma resposta para o sofrimento. Você desmonta isso?
A análise ajuda a gente a lidar com o sofrimento inerente à existência, mas ela não vem responder no sentido de acabar com o sofrimento de uma vida. Ela nos faz ver que dá, sim, para fazer coisas melhores do que viver em angústia, fazendo sintomas, ou inibido nas suas realizações.
Como se deu emocionalmente o processo de escrita?
Minha experiência de escrita deste livro foi brutal, uma tentativa de elaborar questões. Foi um processo analítico mesmo.
“Como diz o Raul Seixas, a gente é uma metamorfose ambulante, mas duro é ser uma metamorfose ambulante o tempo todo”
Vera Iaconelli
O que é o desejo? Qual o papel dele na psicanálise?
O desejo é o motor da vida. É a solução que a gente dá para o fato de que nunca vai saber quem é. A gente precisa seguir em um movimento a partir da falta, que é estrutural, ao invés de ficar paralisado, porque a gente nunca vai ser preenchido nem pelas palavras, nem pelas experiências. Continuar desejando é o antídoto da depressão. O desejo tem que ser conjugado na primeira pessoa: eu desejo. Não pode ser alienado, embora muitas vezes a gente o aliene ao desejo do outro.
A necessidade de se iludir é fundamental na narrativa que o ser humano desenvolve ao longo da vida para existir?
A ilusão é intrínseca à existência humana. A gente precisa ter um eu para chamar de seu, precisa criar uma imagem de si minimamente coesa para sair pelo mundo não tão despedaçado como num surto psicótico. Como diz o Raul Seixas, a gente é uma metamorfose ambulante, mas é duro ser uma metamorfose ambulante o tempo todo. A gente precisa da ilusão. Tem várias ilusões boas, como o amor, mas temos que saber que são ilusões.
Como alguém que tinha medo da morte chega ao entendimento de que ela nem sempre é inconveniente, mas envelhecer, sim?
O envelhecimento não é tratado como um momento de sabedoria e respeito, mas, sim, com violência, negligência, descuido e desrespeito. É difícil enfrentar o envelhecimento na nossa cultura para além da dificuldade de reconhecer que não dá mais para dizer que é jovem, logo, a morte é a próxima estação.
A gente tem vivido essa experiência de prolongar a vida a custo de quê? Quando meu pai faleceu, senti um alívio porque ele já estava entrando numa relação com o corpo muito indigna. Acho que a gente tem direito ao suicídio assistido. Tivemos agora o Antonio Cicero (1945-2024) com uma morte superdigna.
Como foi o processo de buscar ajuda psiquiátrica durante a menopausa, como conta no livro?
Foi um exercício de humildade para mim. É uma fase onde acontecem coisas no corpo, mas também uma fase de retificação subjetiva, que foi dura para mim, porque eu basicamente me achava invencível. Sempre tive muita saúde. A menopausa corta essa disposição toda. Fui a uma psiquiatra que também é psicanalista e me ajudou muito.
Em que fase está agora?
Quero saber o que se passa no pós-menopausa, sobre as novas mulheres de 60. É importante a gente lembrar que tem muita vida pós-menopausa, não acaba aí, está mal começando. Estou nessa praia agora.
Publicado em VEJA São Paulo de 22 de agosto de 2025, edição nº2958