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Memórias de família se transformam em biografias, filmes e até canções

Produtoras, editoras e artistas oferecem serviços para guardar os registros e as lembranças familiares

Por Estadão Conteúdo
Atualizado em 14 fev 2020, 15h50 - Publicado em 18 nov 2019, 14h59
Empresas trabalham com arquivos familiares (Caçadores de Memória (Lex Kozlik) / Estúdio Eon/Reprodução)
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Foi-se o tempo em que as memórias familiares ficavam restritas apenas aos álbuns de fotografias. Já existem no mercado empresas especializadas em oferecer serviços para preservar a história familiar não somente através de livros, mas também de canções e até documentários em vídeo, com “qualidade de cinema”. Os serviços podem incluir reuniões, entrevistas, pesquisa histórica levantamento bibliográfico, viagens e contratação de equipe, motivo pelo qual o custo oscila entre 250 e 150 mil reais.

O Estúdio Eon, por exemplo, é especializado em cinebiografias personalizadas. “A gente percebeu uma procura cada vez maior das pessoas em preservar suas histórias para as futuras gerações. Faz parte de uma tendência que não é só do Brasil”, diz o jornalista Fabio Schivartche, de 46 anos, sócio da empresa com o produtor e fotógrafo Kiko Ferrite, de 47.

O trabalho envolve o levantamento de imagens históricas do período retratado. Para um documentário sobre a matriarca de uma família de origem húngara, Schivartche faz um levantamento de gravações da época para ilustrar quando a mulher fugiu de tropas nazistas e do regime soviético. “O filme não só informa, mas precisa emocionar, inspirar futuras gerações.”

Já o músico Kleber Albuquerque, de 50 anos, utiliza depoimentos e informações pessoais como inspiração no projeto Canção sob Medida. “É uma espécie de retrato sonoro.” Ele, que teve músicas gravadas por Zeca Baleiro e Fábio Jr., considera canções sob encomenda um desafio maior do que outros tipos de composições. “Elas têm uma polissemia para que a pessoa se reconheça, mas que outras possam ouvir como canção normal.” O resultado é entregue com uma dedicatória e, quando solicitado, um videoclipe. E há até a possibilidade de apresentação ao vivo.

Memórias em papel

Domingues Massafera, de 66 anos, reuniu centenas de fotografias e documentos da família por três décadas. Mas não achava que isso era suficiente. Começou, então, a fazer fotocópias de lembranças guardadas por parentes e a entrevistá-los em gravações caseiras, além de levar papel para que fizessem anotações sobre imagens antigas. O resultado era bom, mas não o suficiente. Alguns meses atrás, ele descobriu, enfim, o que procurava: criar um livro sobre os Massaferas, “romanceado” e inspirado no estilo de Machado de Assis.

Para tanto, procurou uma empresa especializada em biografias sob encomenda no último semestre. Mantém, agora, um diálogo constante com o escritor responsável, que está fazendo novos levantamentos sobre os Massaferas. Como Domingues, outras tantas pessoas têm procurado produtoras, editoras e artistas para guardar memórias próprias e da família em um formato mais elaborado, fora da estética amadora.

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“Se eu não organizar isso tudo, vou acabar perdendo”, diz Domingues, que é arquiteto e advogado. “Não queria algo maçante, queria um livro juntando imagens e informações, mas romanceado, para ficar gostoso de ler.” Segundo ele, a biografia está ajudando até a sanar curiosidades antigas, como confirmar que seu bisavô (Carmine Mazzafera, comerciante italiano radicado em Minas Gerais), realmente foi envenenado.

O livro da família é elaborado pelo escritor Guilherme Barros, sócio da LabLivros, especializada em biografias sob encomenda e em obras que reúnem desenhos e relatos de crianças. No primeiro caso, tudo começa com uma reunião para identificar a demanda e bolar um plano de trabalho. O prazo médio é de quatro meses. “Às vezes, é apenas o avô que conta histórias e está com 80 anos. É preciso estar de frente com ele alguns dias ou horas, trocar ideias”, diz. “Outros envolvem um resgate familiar, com diversas entrevistas, pesquisa histórica.”

No caso do projeto infantil, há pais que preferem enviar os desenhos e deixar a interpretação para a empresa. Outros levam o filho para um bate-papo. “Mais importante do que o livro agora é o livro na mão da criança daqui a 30 anos. Ali, ela vai se reconhecer”, diz Barros.

Conversa

O foco também é literário no Writing Triangles, da escritora JoG de 40 anos. O projeto é de narrativas curtas (750 palavras), que fazem uma espécie de perfil. “Hoje, as pessoas não têm tanto tempo para pensar na vida delas, ir mais fundo em histórias passadas”, diz JoG. A experiência começa com um bate-papo de uma hora, geralmente em uma cafeteria. JoG faz anotações e, em cerca de cinco dias, envia o texto. “O que faço é deixar falar, peço fotos significativas ou objetos para ter um gatilho do que é importante para a pessoa. É a impressão daquele momento.” Quem já contratou JoG foi a tradutora inglesa Bianca Thomas, de 40 anos, que mora há dois em São Paulo. Ela diz que a experiência foi quase terapêutica, de “autoconhecimento com os olhos de outra pessoa”.

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Já o publicitário e fotógrafo Lex Kozlik, de 33 anos, mantém o projeto Caçadores de Memórias, que mistura relatos em primeira pessoa e imagens antigas. “Por meio da fotografia, a pessoa entra em contato com sua história.” Os trabalhos de Kozlik envolvem a diagramação e impressão no formato de livro. Um dos mais recentes foi o de um homem que encomendou uma obra para os 50 anos da mulher. Após reuniões, ele e Kozlik decidiram que o livro reuniria 50 depoimentos de amigos sobre a aniversariante, com fotografias importantes para ambos. “As pessoas querem contar como foi a vida, para não deixar só na tradição oral, que acaba sendo perdida às vezes.”

Fotografia

Basta entrar em um museu de história ou de arte mais antiga para se deparar com a seguinte imagem: um homem e uma mulher dispostos perto dos filhos e, às vezes, de animais domésticos. O desejo de se ver retratado acompanha a sociedade há alguns séculos, mas ganhou novos formatos com o avanço da tecnologia, desde a criação da fotografia até a popularização do smartphone.

Se o mercado abre espaço para produtos mais elaborados – e, em alguns casos, bastante caros -, também há ofertas populares. Um exemplo é o livro Aprendi com meu Pai, de 2006, com relatos sobre 55 pais e que, no fim, traz páginas que podem ser preenchidas pelo leitor. Outro, é o de editoras que produzem livros personalizados, para introduzir crianças dentro de histórias, até de personagens conhecidos, como os da Turma da Mônica.

“A partir de determinado momento da História da Arte, há registros de figuras, inicialmente da nobreza e aristocratas. O que é diferente do passado para agora são os meios de registro e a possibilidade de acesso”, comenta Humberto Silva, professor de Filosofia da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap). “Se, há 400 anos, eram só reis e nobres, hoje uma festa simples na periferia pode ser registrada e esse filme se perpetuar no tempo.”

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O professor compara que esse interesse pelo registro também se vê, de forma mais caseira, em eventos familiares, não só quando são fotografados ou filmados, mas também quando exibem painéis com imagens antigas. “É algo que não existia há 30, 40 anos. A gente vê a criança que ganha registro mês a mês, dia a dia, do primeiro dia que fez isso ou aquilo”, diz Silva.

Narcisismo

O sociólogo e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Gerson de Moraes também pontua que a tendência é uma “versão 2019” do que já era observado antes, mas dentro de uma época “bastante narcisista”.

“Ninguém quer se sentir coadjuvante, todo mundo quer se sentir de alguma forma fazendo parte do elenco principal, todo mundo quer ser o ator principal dessa novela chamada vida”, diz Moraes.

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