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Mayra Andrade sobre música e negritude: “Seguir teu instinto pode te levar muito longe”

O universo da cantora e compositora cabo-verdiana, que volta ao Brasil com dois shows esgotados em São Paulo e fala sobre Palestina, maternidade e migração

Por Tomás Novaes
14 nov 2025, 08h00
Mayra Andrade chega a São Paulo: duas noites na Casa Natura Musical
Mayra Andrade chega a São Paulo: duas noites na Casa Natura Musical (Daryan Dornelles/Veja SP)
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À primeira audição, difícil não se apaixonar por Mayra Andrade, 40, e captar de imediato algo muito familiar ao Brasil, ainda que com algum mistério da língua cabo-verdiana, para quem não a domina. Do arquipélago atlântico que soa conterrâneo, Cabo Verde, a cantora e compositora ganhou o mundo e decidiu voltar à essência de sua arte em projeto mais recente, o disco e a turnê ReEncanto, que retorna a São Paulo neste mês com dois shows esgotados na Casa Natura Musical, nos dias 29 e 30.

Tudo mudou quando, no segundo semestre de 2022, a barriga de Mayra começou a abrigar Dayo, sua filha. “A transformação da mulher na gestação começa de forma muito silenciosa, mas profunda. Comecei a sentir uma necessidade de recolhimento até na música. Eu viajava o mundo com banda e salto alto, e meu corpo pediu para sentar em uma poltrona e criar um ambiente de casa”, descreve ela, que estava em meio à turnê de seu disco mais pop, Manga (2019), influenciado pelo afrobeat.

Então nasceu a ideia de revisitar o próprio repertório em shows voz e violão, acompanhada no palco somente do guitarrista Djodje Almeida — esse será o formato das apresentações no Brasil, que também acontecem em Brasília, no dia 27, e, em dezembro, em Curitiba (2), Porto Alegre (4) e no Rio de Janeiro (7).

Ensaio de fotos em Lisboa: Mayra Andrade vive em Portugal há dez anos
Ensaio de fotos em Lisboa: Mayra Andrade vive em Portugal há dez anos (Daryan Dornelles/Veja SP)

O que seriam poucas datas virou uma turnê que se estende até hoje, além de um belo disco ao vivo gravado em 2023 no London Jazz Festival. “O show se revelou portador de uma energia muito especial. A aura daquele momento foi se multiplicando e me mostrou que seguir teu instinto pode te levar muito longe”, diz. “De dentro do ventre, minha filha conduziu muitas decisões para este show. Uma mulher, quando está dando à luz, muitas vezes sente a necessidade de tirar a roupa, virar meio bicho. Senti a necessidade de tirar as roupagens musicais e me entregar de forma muito mais nua e crua”, define.

A estação é de descoberta e recomeços para Mayra. “Hoje sou uma mulher de 40 anos. O que a minha voz conta que não contava antes? O que ela tinha de inocência e perdeu pelo caminho?”, reflete, sobre cantar versos e melodias de momentos passados na turnê. Desde 2020, a cantora é uma artista independente, sem gravadora. E seu objetivo hoje é encontrar um novo ritmo, agora com uma filha, para deixar fluir a criatividade. “Quando você é mãe solo e viaja o mundo mas é presente, leva sua filha. Assim, aquele silêncio do qual brotavam tantas coisas espontâneas acontecem menos. O mais importante agora é criar uma nova rotina em que meu bem-estar psicológico, emocional e físico esteja recalibrado, para que eu possa escrever”, diz.

Essa é sua prioridade, antes de compreender o próximo caminho musical. “Sinto que voltarei para algo mais energizado e eletronizado. Mas não acredito que será uma continuidade do Manga. Estou curiosa para perceber quem nasceu em mim agora. E essa pessoa vai precisar de espaço e silêncio para encontrar as chaves. Tem muita coisa aqui dentro.”

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A primeira música que Mayra compôs, aos 10 anos, falava sobre a destruição do meio ambiente. “Sempre fui um ser muito preocupado e atento ao mundo que me rodeia. As coisas sempre me tocaram de um jeito muito profundo.” Letras sobre temas como injustiça e migração estão presentes desde seus primeiros discos. E não é de hoje que a artista usa a voz para pautas além da música, como a causa palestina. “O mundo tem acentuado seu estado de doença, e essa questão me assombra há muito tempo. Há quinze anos me recuso a cantar em Israel”, declara.

Em julho, a artista escreveu nas redes sociais que “palavras são muito fracas para descrever o quanto essa atrocidade me mudou”, sobre o conflito no Oriente Médio. “Sempre ouvi de colegas que iam tocar em Gaza relatos muito dolorosos, e não consigo ignorar. Poucas coisas afetaram o meu equilíbrio psicológico e emocional tanto como esse genocídio”, completa.

Mayra nasceu em Cuba, mas com apenas poucos dias de vida foi para Praia, capital de Cabo Verde, na Ilha de Santiago. Ainda morou em Senegal, Angola e Alemanha na infância, devido ao trabalho do padrasto, diplomata. Aos 17, partiu para Paris, onde cursou arte e comunicação, mas largou para seguir carreira musical. “Morei catorze anos em Paris, mas nunca me senti em casa. Aqui eu me sinto em casa”, diz, sobre Lisboa, sua cidade há dez anos, onde foi feito o ensaio de fotos para esta capa de VEJA SÃO PAULO.

Mayra Andrade fala sobre migração e a causa palestina:
Mayra Andrade fala sobre migração e a causa palestina: “Há quinze anos me recuso a cantar em Israel” (Daryan Dornelles/Veja SP)
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“Há vinte anos eu não tinha a sensação de que era bom viver na pele de um imigrante. Mas agora tenho a impressão de que está bem pior”, comenta, sobre a crescente tensão sobre a imigração no continente europeu. “Estamos vivendo um momento decisivo, as águas estão se abrindo. Parece que as ideias fascistas, preconceituosas e discriminatórias estão se acentuando para que exista do outro lado uma maior mobilização e conscientização”, reflete.

Em Cabo Verde, a cultura brasileira chegou aos ouvidos e olhos da compositora primeiro pelas novelas, exibidas no país com alguns anos de atraso. “Lembro de Roque Santeiro, Sinhá Moça, Cambalacho, Fera Ferida… Era um repertório musical muito bom, além dos elementos da literatura brasileira”, lembra. Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque foram referências ainda na infância.

“Na pré-adolescência aprendi muitas músicas de Djavan. Sempre com improvisos vocais, o que identificava como muito africano. Foi um professor incrível, com aqueles solos jazzísticos”, conta, ainda citando Elis Regina, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Bosco, Milton Nascimento, Gal Costa… “Sinto que as pessoas vêm de planetas diferentes. E tenho a sensação que Maria Bethânia veio de um lugar ao qual eu pertenço também. Não sei como explicar sem parecer pretensiosa, mas a energia da voz, a forma como ela canta e se traduz, tão espontânea… Me identifico muito”, conta.

Sua primeira viagem ao Brasil foi decisiva. Aos 18 anos, a convite do compositor e diretor Caique Botkay (1951-2018), gravou no Rio de Janeiro a música Amor Cuidado, um hino da luta contra a aids para uma campanha do Ministério da Saúde. Era um time e tanto a seu lado: Chico Buarque, Alcione, Martinho da Vila, Dona Ivone Lara, Emílio Santiago, entre outros. “Nos cruzamos em um avião em Cabo Verde. Ele ia com a intenção de convidar Cesária Évora, mas ela não podia. Alguém falou de mim, e calhou que nos encontramos e até conversamos. Passei uma semana no Rio e, quando voltei, suspendi a faculdade, até hoje (risos).”

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A relação com o país onde cresceu segue vívida — antes da vinda ao Brasil, Mayra passou alguns dias por lá, para o casamento de uma amiga. “A minha filha tem 2 anos e meio e já esteve em Cabo Verde umas quatro vezes. A babá que me ajuda a criá-la é cabo-verdiana, e peço para ela falar em crioulo. Ela reconhece a bandeira, sabe o que é cachupa, cuscuz e até aprendeu a cantar o hino”, compartilha.

Deste lado do Atlântico, os shows de Mayra acontecem poucos dias após o feriado do Dia da Consciência Negra, celebrado no dia 20. Sobre a luta da comunidade negra através da resistência ou da afirmação, para além de histórias de dor, Mayra acredita que cada caminho é válido. “Para um ser humano que é negro, sofre violência e não teve oportunidades, assim como seus pais e avós, é difícil pedir que traga a bandeira da paz e do amor”, opina.

“Talvez o Dia da Consciência Negra será ultrapassado em algumas centenas de anos. Mas, enquanto as pessoas não forem sanadas, resgatadas e cuidadas, dificilmente dá para virar a página”, conclui. Uma certeza é que a sensibilidade de Mayra seguirá vigilante às injustiças e lutas que lhe tocam, como faz desde os primeiros versos que escreveu no papel.

Mayra Andrade em turnê pelo Brasil: shows em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba
Mayra Andrade em turnê pelo Brasil: shows em São Paulo, Brasília, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Curitiba (Daryan Dornelles/Veja SP)

Confira depoimentos de artistas brasileiros sobre Mayra Andrade

CHICO CÉSAR. Mayra é a tradução do Cabo Verde moderno e da potência musical dessas ilhas, que nos deram artistas como Cesária Évora e Mário Lúcio. Nós, brasileiros, temos uma paixão por ela, por uma identificação e uma dessemelhança. É uma alegria ser contemporâneo desta artista imensa.

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CRIOLO. Mayra tem uma voz incrível e um talento único. O convite para ela participar do meu álbum Sobre Viver, na música Ogum Ogum, vem de um tempo de admiração. Ter a sua voz, raiz, origem e espiritualidade trouxe uma beleza incrível à canção. É uma grande artista, muito gentil e profissional.

MARIANA AYDAR. É uma das cantoras que mais admiro e que tenho a sorte de ter também como amiga. Mayra é uma rainha, com uma musicalidade fora da curva. Ela não se parece com ninguém. E é uma compositora incrível, com melodias que saem muito naturalmente.

JOTA.PÊ. A arte da Mayra Andrade é das coisas mais ricas que já passaram pelos meus ouvidos. O ritmo, as músicas em crioulo, as melodias… O meu último álbum solo, Se o Meu Peito Fosse o Mundo, ganhador de três Grammys, só existe dessa forma graças ao seu disco Manga.

AGNES NUNES. Mayra é uma grandeza, uma força de ancestralidade que não sei explicar. Ela transcende para além do que se consegue enxergar. Aprendi muitas coisas com ela sobre força e resiliência. Sei que é uma mãe e mulher maravilhosa, tenho muito carinho por ela. Para mim, é uma lenda viva.

MÁRCIA CASTRO. Vejo uma similaridade muito grande do jeito cabo-verdiano com o jeito baiano de ser. Nossa comunicação foi muito fácil. Para mim, é uma das grandes cantoras do mundo. É uma voz que leva a cultura do seu lugar para o mundo como uma missão de vida. Sou muito fã da minha amiga. ■

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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de novembro de 2025, edição nº 2970

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