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‘Todo bom personagem está sob pressão’, diz ator Matheus Nachtergaele

Com reestreia musical em São Paulo, artista fala sobre o espetáculo e revela detalhes da continuação de 'O Auto da Compadecida'

Por Júlia Rodrigues
3 nov 2023, 06h00

Matheus Nachtergaele, 55, concedeu a entrevista na varanda do hotel no qual está hospedado em Higienópolis, na região central da capital. Apesar de ser paulistano — o ator se mudou para o Rio no início dos anos 2000 —, as estadias na cidade, seja para tocar projetos ou visitar a família, estão mais raras ultimamente. “Muito trabalho”, ele justifica. A viagem desta vez, no entanto, traz um prenúncio feliz. Nesta sexta (3), ele reestreia Molière — Uma Comédia Musical, no Teatro Liberdade. No espetáculo, que volta para São Paulo após cinco anos, ele vive o dramaturgo francês ao lado de Elcio Nogueira Seixas e Renato Borghi. “Sempre fiz comédia em televisão, mas guardava o palco para as tragédias. Agora, vendo tudo que está me acontecendo, sou um ator que está apostando as fichas na alegria, sabe?”, diz, sorrindo, enquanto fuma um cigarro. Entre as realizações recentes está O Auto da Compadecida 2, que acabou de ser gravado e deve estrear no ano que vem.

Em meio a tantos musicais, o que Molière tem de único?

É o único musical antifascista em cartaz em terra brasilis (risos). A peça foi escrita por Sabina Berman, uma autora mexicana contemporânea. É a história da luta de Molière, o rei da comédia, contra Racine, o rei da tragédia, na França de Luís XIV mas sob o ponto de vista de uma mulher latina. A Igreja sempre interferiu em decisões do Estado e nós vivemos até o ano passado um momento muito delicado no Brasil, quando se usou o nome de Deus para fazer política, e pior, política miliciana agressiva, machista e fascista. Molière foi vítima disso. Como toda boa comédia, as suas cutucavam os poderosos, então, a Igreja fez com que ele fosse banido da corte. Molière morreu na miséria e teve seu teatro queimado por fiéis. Qualquer coincidência com o que aconteceu em janeiro em Brasília não será mera coincidência. Sem contar que nossa trilha é baseada na obra do Caetano Veloso e temos no elenco o Renato Borghi, que é um dos últimos viventes da geração que criou a tropicália.

O Auto da Compadecida acontece em Taperoá, vilarejo no sertão da Paraíba. Na sua opinião, qual aspecto do filme conquistou o país inteiro?

Ariano Suassuna escreveu O Auto da Compadecida baseado na literatura de cordel e na tradição oral do Nordeste. O Chicó foi inventado pelo Ariano, mas o João Grilo, não, ele já existia. O João Grilo é o Arlequim, o Lazarillo de Tormes. Sempre há nas culturas um personagem muito pobre, muito inteligente e que com alegria e sagacidade engana os ricos e poderosos e sobrevive. A maneira como Ariano genialmente estruturou o João Grilo na peça é a medida do sucesso do Auto, não só no teatro desde sempre, mas da nossa adaptação para o cinema e para a televisão.

Como é reviver João Grilo? O personagem tem algo de diferente em relação à primeira versão?

É cedo para dizer. Acabei as filmagens na quinta passada, ainda estou com saudade física dele, estávamos morando no mesmo corpo. Estou com dificuldade ainda de estar na rua sendo eu, e as pessoas me olham sabendo que acabei de fazer o João Grilo, estão todos ansiosos. Achei que ia deixar alguma tristeza ou cansaço entrar no João Grilo, mas isso não aconteceu. Enquanto o primeiro era cheio de esperança, o segundo é um resistente, menos esperançoso talvez, porém mais realista. Nele está provada a resistência do homem simples do Brasil.

“Achei que ia deixar alguma tristeza ou cansaço entrar no João Grilo, mas não aconteceu. Enquanto o primeiro era cheio de esperança, o segundo é um resistente”

Matheus Nachtergaele
Passaram-se mais de vinte anos desde a gravação do primeiro filme, que estreou em 2000. De que modo as mudanças tecnológicas influenciaram a trama?

A sensação que tive foi a de que eu havia tomado um ácido e estava de novo no Auto da Compadecida. Isso porque, além dos anos que passaram, o Guel (Arraes, diretor) está fazendo uma aposta muito louca e linda, que é gravar o filme todo em estúdio. É uma versão tecnológica desse sertão, não é presepiozinho de cidadezinha, tudo tem os tons forçados das histórias em quadrinhos. O Auto 2 traz uma tecnologia de LED que ainda não foi usada no Brasil. Visualmente vai ser deslumbrante. Quem já viu e gosta do filme não vai ver o mesmo de novo.

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O mercado audiovisual brasileiro tem revisitado antigas produções de sucesso com continuações e remakes, como ‘O Auto da Compadecida’, ‘Cidade de Deus’, filme do qual você participou e que vai ganhar série, e ‘Renascer’, nova versão da novela da Globo para a qual você foi escalado. Na sua opinião, quais as razões por trás desse movimento?

Boas histórias que merecem ser recontadas. É um pouco como imaginar por que toda criança gosta de ouvir a história da Chapeuzinho Vermelho. O audiovisual se modificou de maneira violenta, assistir a um filme hoje não é o mesmo que era antes da internet, de mil streamings. Talvez isso explique de maneira otimista o desejo de voltar para histórias boas e fundas, como um terreno seguro. Me chamaram para Cidade de Deus, mas não consegui porque estava gravando o Auto. Estou negociando para entrar na segunda temporada como o Sandro Cenoura, daí, se isso acontecer, vou revisitar outro personagem, que também foi importante no meu caminho.

Você nasceu em uma família paulistana de classe média, mas seus personagens mais conhecidos são pessoas marginalizadas, como a travesti Cintura Fina, da série da Globo ‘Hilda Furacão’ (1998), e o próprio João Grilo. Como essa “mistura” deu tão certo?

Eu sou marginalizado. Sou branco e tive acesso ao estudo, mas também tive lá meus perrengues. Claro que através dos personagens fui saboreando os marginais. O Sandro Cenoura é o marginal do morro carioca, o João Grilo é o marginal do sertão, o Cintura Fina é o marginal trabalhador da noite. Todo bom personagem está sob pressão. O meu tipo físico corrobora para isso, não tenho os aparatos do macho alfa vencedor. Então, é um encontro deste corpo de ator e de um tipo de personagem que é o arquétipo do Brasil. O Brasil é um país de marginais, acho que 90% da população está em situação de marginalidade de alguma forma. Não podemos pensar em marginais como bandidos, mas como pessoas que estão à margem do modelo americano de sucesso.

Publicado em VEJA São Paulo de 27 de outubro de 2023, edição nº 2866

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