Pelão, o produtor musical dos primeiros discos de Cartola e Adoniran
Livro traz trajetória cheia de histórias de JC Botezelli e de seu resgate dos cantores populares em plena ditadura, que até "Tiro ao Álvaro" censurou
Nascido em São José do Rio Preto, João Carlos Botezelli, o Pelão, 78 anos, é um dos produtores musicais mais importantes do país. “Para quem não sabe, foi o Pelão, paulista, que produziu, após verdadeiras guerras contra ceguetas que dirigiam as gravadoras multinacionais, os primeiros e antológicos discos de Cartola, Nelson Cavaquinho, o emocionante (e único) registro fonográfico de Carlos Cachaça, os incríveis discos com os sambistas de nossas escolas de samba nas vozes dos próprios, e muitas, muitas outras produções imortais”, escreveu Aldir Blanc (1946-2020) na contracapa do livro Pelão — A Revolução pela Música (Editora Garoa Livros, R$50).
A obra acompanha a trajetória cheia de histórias daquele que foi produtor musical do Fantástico e de festivais da Tupi e seu resgate dos veteranos cantores populares. Entre as “produções imortais”, estão trabalhos da paulistana Inezita Barroso e os dois primeiros discos-solo de Adoniran Barbosa. No trecho a seguir, o episódio em que cinco sambas de Adoniran, entre eles Tiro ao Álvaro, foram barrados pela censura.
No final de 1973, quando a Odeon enviou as letras das músicas que apareceriam no álbum de Adoniran Barbosa para o exame obrigatório da Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão do Ministério da Justiça, imaginava-se que as liberações seriam quase automáticas. Afinal, havia anos, para não dizer décadas, que essas composições recebiam a devida autorização para ser gravadas em disco.
Daí se entende o espanto de Pelão ao receber a notícia de que os censores havia barrado, de uma só vez, cinco sambas de Adoniran. Cinco.
Os pareceres que determinavam os vetos flutuavam entre o cômico e o trágico. (Como se sabe, os agentes da repressão não eram conhecidos pela inteligência ou perspicácia.)
Para “Tiro ao Álvaro”, “O casamento do Moacir”, ”Já fui uma brasa” e “Um samba no Bixiga”, o argumento era simples, direto e obtuso: “A falta de gosto impede a liberação da letra”. No caso de “Despejo na favela”, o veredito foi de outra natureza: “O final da letra dá ideia de protesto contra a ordem judicial e a condição social de Narciso na favela. Dessa maneira opinamos pela interdição da mesma”.
O departamento jurídico da Odeon encaminhou recurso solicitando reexame censório, dando início a um vagaroso processo que ziguezaguearia pelas divisões de censura de São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro. Nesse imbróglio, o “Samba do Arnesto” também entrou na berlinda — e um dos agentes aproveitou para recomendar informalmente que o compositor fosse matriculado no Movimento Brasileiro de Alfabetização, o Mobral, sugestão disparatada que nem mesmo o fígado guerreiro de Pelão conseguiu digerir.
Cerca de quatro meses depois, as pendências ainda não estavam resolvidas. Impaciente, o produtor decidiu tentar um atalho — e escalou Idibal Pivetta para acompanhá-lo em uma expedição pelo Departamento de Polícia Federal, na Rua Xavier de Toledo, a fim de tentar resolver pessoalmente a questão. Além de sua atuação na defesa do direito dos presos políticos, o advogado Idibal acumulava dupla atividade como dramaturgo: sob o pseudônimo César Vieira, fundara o Teatro Popular União e Olho Vivo e escrevia peças consideradas altamente subversivas pelos militares. Ao entrar na repartição, o causídico percebeu que o delegado responsável fora seu colega de turma do Colégio Arquidiocesano. A partir daí, o caso ficou mais tranquilo — Idibal conseguiu tirar “Já fui uma brasa” da lista de censuradas e, mais importante, obteve a promessa de aprovação definitiva do LP. “Vou liberar porque é você que está pedindo, Idibal. Agora vocês me dão licença que preciso voltar ao trabalho. Estou correndo atrás de um tal César Vieira, esse está me dando uma dor de cabeça danada.”
Segurando o riso, os dois visitantes se retiraram, conscientes de que haviam feito o melhor negócio possível. No dia 3 de maio de 1974, com o aval de F.V. de Azevedo Netto, chefe da Seção de Censura de Teatro e Congêneres, o processo 726 era oficialmente encerrado. Adoniran pedia passagem.
Nascido em São Paulo, em 1978, Celso de Campos Jr. é jornalista e autor de Adoniran — uma Biografia, As Joias do Rei Pelé e 100 Senna, entre outros livros.
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Publicado em VEJA São Paulo de 27 de janeiro de 2021, edição nº 2722